Entre a bola e o lápis

I
Já se foi o tempo que a bola e o lápis eram objetos absolutamente excludentes na formação de nossos jovens. Era comum sabermos que o fulano que queria jogar futebol profissionalmente tinha saído cedo da escola. Escola e campo de futebol se repeliam, ainda que o campo/quadra da escola seja sempre um convite a “matar” a aula. A Educação Física, erradamente entendida como uma “não aula”, é a disciplina mais querida pela gurizada. Isso é um recado a nós, professoras e professores, para buscarmos reinventar nossas didáticas e conteúdos. Jogar bola não é a mesma coisa que ser jogador de futebol. É, como qualquer outra carreira, muito exigente e poucos conseguem aquilo que parece ser um atrativo decisivo: dinheiro e fama.

II
A escolarização é uma exigência dos tempos atuais. Ainda que com algumas contradições, anos de estudo continuam tendo relação direta com a renda e com possibilidades de formação cultural. Várias pesquisas mostram que, quanto mais uma pessoa fica na escola, mais chances ela tem de ter acesso a tecnologias da informação e comunicação e buscar empregos com melhores remunerações. Assim, diplomas escolares são importantes em processos de mobilidade social ascendente. Isso mostra a importância da escola e o descalabro que é a falta de investimentos adequados na área educacional. E não é apenas por uma questão pragmática e uma relação causal (anos de escolarização = emprego/renda), mas, sobretudo, porque mesmo diante de seus problemas, a escola é um espaço de socialização que transcende os conteúdos das disciplinas. Na escola temos “aulas de vida”, aprendemos a conviver com o diferente, nos descobrimos como seres afetivos, choramos e sorrimos, temos lições que carregamos para sempre.

III
Para ser jogador de futebol, a primeira coisa importante é ser homem. Sim, pois o futebol feminino, ou de mulheres, é pouquíssimo valorizado em nosso país, por mais que a nossa seleção seja muito vitoriosa e tenhamos uma das mais extraordinárias jogadoras do mundo, a Marta. Essa jogadora foi indicada 12 vezes para o prêmio de melhor jogadora do mundo pela FIFA, ganhando em 5 oportunidades. Já marcou 15 gols em jogos de Copa do Mundo, o que a faz a maior goleadora dessa competição. Mesmo assim, ser jogadora profissional no Brasil é muito mais difícil para uma menina do que para um menino. Mais uma gritante desigualdade de gênero de nossa sociedade. Sabemos que o Ypiranga está bem ou mal em um campeonato, mas quem se lembra que o Atlântico F.C. recentemente foi campeão gaúcho feminino?

IV
Em levantamento publicado no site Globo Esporte em 2016, apenas 15 jogadores da Série A do Campeonato Brasileiro masculino alcançaram a educação superior. Isso representava cerca de 2% do total de jogadores dos clubes que disputaram a competição. A realidade de prolongamento escolar aos níveis superiores é ainda muito aquém do que precisaríamos em nosso país. Cerca de 18% das pessoas entre 18 e 24 anos está na Educação Superior. Temos ainda mais de 11 milhões de analfabetos(as) no Brasil, sendo que a escolaridade média de um brasileiro adulto é de 10,1 anos, ou seja, um pouco mais do que o Ensino Fundamenta completo. A bola parece ser um caminho mais fácil para ganhar a vida, por mais que o uso do lápis e dos livros sugira que, mais do que termos coisas, sermos algo vale a pena. Entre o ter e o ser, precisamos ter para ser no mundo que institui a cidadania pelo consumo. E isso impacta muito as nossas juventudes atuais.

V
Sinal de alguma mudança na nova geração de jogadores brasileiros, a seleção que ganhou a medalha de ouro na Olimpíada do Rio de Janeiro em 2016 teve uma média de escolaridade maior do que a média nacional. Dos 18 convocados para a Olimpíada, 77,7%, ou 14 dos 18 jogadores do grupo, concluiu o Ensino Médio (levantamento da Folha de São Paulo). A média nacional é de cerca de 40% entre 18 e 24 anos (a idade olímpica no futebol é até 23 anos). A grande questão é que ser um jogador de futebol de ponta, rico e bem sucedido, é mais improvável do que um estudante pobre cursar Medicina, que é o curso mais concorrido nos processo seletivos das principais universidades do país. Estudo divulgado pela CBF, com base no mercado da bola de 2015, mostrou que 96% dos atletas profissionais recebiam até R$ 5 mil por mês, sendo que 82% ficavam com salários de até R$ 1 mil mensais. Por isso, vale tratar bem a bola sem esquecer de tratar bem os cadernos. Ainda mais para uma carreira curta e altamente seletiva. Por essas e outras coisas é o que Mano é meu ídolo: depois de estar na 5ª série com mais de 30 anos, nosso centroavante, hoje comentarista/humorista da Rádio Cultura, seguiu estudando e se formou no Bacharelado em Administração na URI. Até em pneu ele estudou.

 

Curiosidade
Será defendida no final desse mês a dissertação “O FUTEBOL ALÉM DAS QUATRO LINHAS: a formação das sociabilidades a partir de sua mercadorização” de autoria de Henrique Trizoto, aluno do Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFFS Campus Erechim. Tive a alegria de ser o orientador dessa pesquisa que explora as transformações do futebol ao longo do tempo e realiza entrevistas com ex-atletas profissionais que atuam no Campeonato Amador de Erechim. Uma pesquisa inédita que revela muito sobre a trajetória entre o sonho de ser jogador profissional e a realidade de se recolocar em outras atividades na vida, ainda que continuem jogando de forma amadora. Em breve essa pesquisa estará disponível no repositório digital da UFFS.

 

 

Compartilhando leituras

 

Mestre da crônica, do texto curto e de um fino humor, Luís Fernando Verissimo, colorado declarado, flerta com o futebol com a cadência de um articulador habilidoso. Em “Time dos sonhos: paixão, poesia e futebol” (Rio de Janeiro, Objetiva) temos uma coletânea de textos que nos fazem gostar de ler da mesma forma que ligamos a TV na quarta à noite para ver um bom jogo de futebol.

 

Por Thiago Ingrassia Pereira

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