Um pequeno manifesto em defesa da formação científica de professores e professoras

Dia desses, em meio à rotina de pesquisas, aulas, reuniões, orientações, publicações, pareceres e outras questões típica da minha profissão, recebi um anúncio de um curso de pós-graduação a distância em “coaching educacional”. De imediato, estabeleci relação com um conjunto de situações em que a formação na área educacional parece estar, cada vez mais, sujeita a ter como protagonistas pessoas que não são, de fato, da área. E isso é um problema grave. Sabe por quê?

Imaginem que alguém sente palpitações no coração. Não parece óbvio ir procurar um(a) profissional da área de cardiologia? Quando uma mulher está grávida, é absolutamente natural ter o acompanhamento de um(a) profissional obstetra, certo? Penso que ninguém duvida que, para nos defender em um processo judicial, vamos contratar uma pessoa profissional do direito.

Não parece plausível satisfazermos uma demanda específica de forma aleatória, ou seja, não é provável que um(a) engenheiro(a) seja solicitado(a) para realizar uma cirurgia ortopédica. Assim, deveria causar estranhamento a presença constante de profissionais sem a devida formação profissional específica, atuando na formação de profissionais que, como em todas as áreas, têm sua especificidade.

Mas, de forma preocupante, é o que estamos observando na educação. Percebam que não estou defendendo uma hiperespecialização ou fazendo um discurso corporativo sectário. É evidente que, por sua abrangência e impacto na vida de todos e todas, que a educação e suas instituições sejam objeto de análise de forma ampla. É direito da família acompanhar e participar da vida escolar das crianças e jovens, aliás, percebemos que muitas famílias são omissas no monitoramento do desempenho escolar, se restringindo a reclamações nada propositivas.

Então, defendo o direito a opiniões e penso ser importante o controle social, principalmente do setor público, tendo em vista que as instituições privadas acabam sendo reguladas de alguma forma pelo mercado. Por outro lado, é fundamental diferenciarmos essa dimensão opinativa (doxa) do rigor analítico que deve ser parte de um campo de conhecimento (episteme). Trago as duas palavras de origem grega para afirmar a necessidade da episteme para muito além da doxa na formação inicial e continuada de professores(as).

Assim como nos simples exemplos anteriores, nas quais a especificidade é considerada óbvia, deveria ser algo natural que profissionais da educação se envolvessem na complexa e sensível tarefa de formar as pessoas que formam todas as outras. Entender de alguma área do conhecimento exige muito mais do que opinião, pois o método e a teoria são parte de um processo extenso que requer formação em nível superior.

Da mesma forma que não é qualquer profissional de qualquer jeito que pode fazer uma cirurgia no cérebro, não pode ser qualquer profissional de qualquer jeito que pode formar professores(as) que cumprem tarefa de primeira ordem em nossa sociedade. Posso até ter uma opinião sobre como se opera um cérebro, mas eu não tenho formação para ter conhecimento sobre como se opera um cérebro. Como doutor em educação, não me sinto confortável em participar de um evento específico sobre engenharia química.

Mas, o que se verifica é uma presença significativa de outros profissionais atuando na educação. Por isso, meu manifesto em defesa da formação científica de docentes, pautada em estudos, pesquisas e evidências discutidas com o devido rigor em pela comunidade acadêmica e escolar. O que me incomoda não é o fato de profissionais diversos falarem sobre educação, pois isso seria mais um exercício de doxa (opinião), mas, de forma perigosa, essa atuação profissional ser compreendida como episteme (conhecimento).

Nesse momento é fundamental termos muita clareza: coaching, comunicador(a), artista e outros(as), não são profissionais da educação na dimensão do conhecimento, ficando apenas na opinião, no palpite ou na impressão espontânea. Livros de autoajuda não podem ser confundidos com obras científicas, fruto de pesquisa e legitimadas entre os(as) pares, ou seja, entre as pessoas que têm a formação específica. Quem gosta de consumir essas conteúdos, tudo bem, é uma opção. O que é problemático é confundir as coisas.

E esse cenário confuso, muitas vezes, tem grande contribuição de colegas da área educacional que, em busca de algum reconhecimento (simbólico e material) imediato e de mercado, atuam mais como palestrantes motivacionais do que como cientistas. Percebendo o acolhimento acrítico de gestores(as) e docentes, investem em formações rasas, com apelo emocional barato, não causando nenhuma modificação substantiva no público participante, ou seja, são formadores(as) que não formam, mas deformam.

Nesse sentido, é muito complicado ver redes de educação de municípios, fundações e institutos contratarem a peso de ouro coachings, artistas, “celebridades” ou colegas “híbridos(as)” (misto de docentes e coachings) para tratarem de formação docente. Não podemos confundir entretenimento com ciência. E ciência não precisa ser algo fechado em sua linguagem e recursos didáticos, pelo contrário, trabalhamos no aperfeiçoamento de nossa didática para que o conteúdo científico possas chegar de forma mais simples a mais pessoas.

Eventos com docentes já deveriam ser pensados como espaços mais específicos, pois são compostos por pessoas que têm formação (nível médio e superior, muitas com pós-graduação) e reúnem pré-requisitos para acompanhar discussões especializadas. Eu gosto muito de momentos de descontração, ouvir pessoas que são boas comunicadoras, mas isso não cabe nos meus espaços profissionais da educação, a não ser como espaço de entretenimento, ainda que defenda que o entretenimento já tem seu lugar na confraternização (bar, jantar, festas).

Professoras e professores são profissionais decisivos para a vida em sociedade. Não é possível pensarmos seriamente qualquer melhoria social que não passe pelas instituições educacionais. Por isso, assim como levamos nossos filhos e nossas filhas em profissionais da pediatria quando estão doentes, e não em um(a) especialista em ciência da computação e muito menos para ouvir um(a) palestrante dar dicas de como curar a criança, temos que ter a responsabilidade de formar professores(as) a partir da ciência e do conhecimento, não da opinião ou de “achismos”.

Meu manifesto termina como começou: com o devido respeito às diversas expressões profissionais, mas convicto da especificidade (que deveria ser óbvia!) da perspectiva científica na formação inicial e continuada de professores(as). Afinal, ninguém é capaz de ensinar aquilo que não aprendeu, assim como evento científico não é show de variedades.

Thiago Ingrassia Pereira

Sociólogo, Doutor (UFRGS) e Pós-Doutor (Universidade de Lisboa) em Educação

Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS)

 

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