Psicóloga alerta que sociedade é corresponsável pelo cuidado a crianças e adolescentes
“Há pouco mais de dez dias foi a julgamento o assassino de Patrícia Fátima Sosin de Oliveira, morta aos nove anos no início de 2015, após ser estuprada, ter seu corpo vilipendiado e ocultado por três vezes. O crime que chocou a comunidade erechinense pela barbárie e frieza como foi cometido, foi julgado e o criminoso sentenciado a 42 anos de prisão ao que o Ministério de Justiça Criminal de Erechim recorrerá a fim de aumentar a pena.
O jornalista Salus Loch, na cobertura do julgamento, escreveu um texto bastante provocativo intitulado “uma decisão maior do que a sentença” no qual instiga os atores sociais, a rede de proteção de crianças e adolescentes e a população da cidade a observarem o “caso Patrícia” como ponto de partida a uma reflexão que transcenda a busca pela justiça que criminaliza e penaliza o violentador, trazendo para a pauta do debate o papel social de cada cidadão no cuidado e proteção de nossas crianças e adolescentes.
Ao aceitar esta provocação, permaneço no argumento do jornalista de que somos todos corresponsáveis quando se trata de proteção e cuidado de crianças e adolescentes, isto porque não se trata da responsabilidade óbvia de cuidar e educar os próprios filhos e familiares – o que, por uma série de fatores, nem a todos é possível.
Preservar o direito de crescer e se desenvolver de forma saudável e em ambientes apropriados, que garantam as condições socioeconômicas e psicológicas adequadas às necessidades das crianças e adolescentes está entre as funções da família, da sociedade e do Estado designadas pelos principais acordos internacionais de direitos da criança, assim como na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente, reconhecendo a criança e o adolescente como sujeitos de direitos e prioridade absoluta na promoção e defesa dos seus direitos e de controle social. Infelizmente, as leis no papel não são capazes de proteger todas as nossas crianças e adolescentes das atrocidades de que os seres humanos são capazes, como nos escancaram casos como o de Patrícia, do menino Bernardo e tantos outros/as. Direito e dever são conceitos abstratos transformados em ações instituídas e institucionalizadas, necessárias à ordem social.
De modo geral, sabemos de nossos direitos e deveres como cidadãos. Sem querer entrar no perigoso espectro de hipóteses sobre os motivos que levam adultos a cometerem estupros, homicídios, abusos a crianças e adolescentes, nossa reflexão busca evidenciar o papel daqueles que costumam garantir ambientes seguros e protetivos às crianças de suas próprias famílias, porém, que nem sempre estão atentos, por exemplo, ao filho do vizinho que tentou suicídio pela segunda ou terceira vez, daquela mãe que buscou atendimento para o filho cheio de hematomas e com relato confuso no posto de saúde, àquele aluno com problemas de aprendizagem, sonolento, choroso e com sinais de maus tratos, à paciente com cicatrizes provocadas por automutilação e que oferece justificativas inconsistentes para os ferimentos, à mulher que registrou ocorrência policial pela décima vez e que se vê impelida a proteger o agressor porque dele provém o seu único sustento e de seus filhos.
Estes exemplos são facilmente identificados diariamente nos serviços públicos assim como nos ambientes domésticos. Tanto a menina Patrícia como o menino Bernardo passaram por diferentes políticas públicas voluntária ou involuntariamente. No entanto, em algum ponto, suas dores ficaram invisibilizadas. Em ambos os casos a violação de direitos fora anunciada. Muito além da necessidade de encontrar “o ponto”, a interseção ou o “furo” na gestão ou execução das políticas públicas, que permitiu que estes crimes acontecessem, a reflexão que deixo tem a ver com o quanto estamos comprometidos com nossas crianças e adolescentes tendo em consideração o valor intrínseco (o olhar sobre a criança e o adolescente como seres humanos) e o valor projetivo das gerações (o olhar sobre a criança e o adolescente como detentores do futuro da nossa sociedade).
Esta reflexão tem a ver com a superação do olhar sobre as instituições e as leis, mesmo considerando sua importância e responsabilidade na promoção e defesa de direitos, transcendendo a busca por bodes expiatórios e assumindo a responsabilidade humana de olhar para o outro de modo empático e solidário. Nenhuma lei é capaz de abarcar a simplicidade destas atitudes, nem tampouco as instituições são capazes de trabalhar com estes códigos. Isto porque somente um ser humano é capaz de reconhecer a humanidade no outro e isso parece ser algo imprescindível para que nos mantenhamos sensibilizados sobre os cuidados com nossas crianças e adolescentes. Tendo-os um pouquinho mais como “nossos” é possível que as instituições que, por competência e atribuição, precisam garantir proteção e defesa de direitos, sejam mais efetivas na prossecução de seus objetivos”.
Por Valéria Barancelli Psicóloga no CREAS (Centro de Referência Especializada da Assistência Social) Terapeuta Livre da Terapia do Sentir Mestre em Intervenção Social, Inovação e Empreendedorismo pela Universidade de Coimbra