Há um monumento que foi inaugurado em dezembro de 2024 na Praça Prefeito Jayme Lago, no centro de Erechim. Sabem do que se trata? Diferente de outros totens, esculturas e placas festivas no espaço urbano, este monumento é um memorial em homenagem às vítimas de um dos episódios mais tristes da história da cidade. Nem só de bons momentos vive uma localidade, nossa memória coletiva também é composta de situações de luto, tristeza e dor.
O memorial[1] trata do terrível acontecimento de 22 de setembro de 2004, na barragem da Corsan no Povoado Argenta, no interior de Erechim. Na ocasião, 16 jovens e uma monitora morreram quando o ônibus escolar caiu nas águas. Algo terrível, desesperador, trágico, no sentido mais profundo deste termo. Meu respeito a quem se foi e às famílias que, mesmo mais de duas décadas depois, sentem a saudade que não passa.
Saudade e, imagino, um sentimento de injustiça. Para as autoridades, não foi um homicídio doloso, mas só culposo. Segundo a perícia, foi constatada falta de manutenção do ônibus escolar, péssimas condições da estrada e o abuso da velocidade do veículo. Então, quem dirige um transporte escolar, saiba bem, é responsável por vidas e sonhos. Levar e trazer crianças com segurança é um trabalho muito importante. O contrário disso é crime. Uma verdadeira tragédia.
Contudo, temos que ter o cuidado de não banalizarmos esta concepção. Bater um dedo na parede é ruim, dói, mas não é uma tragédia. Receber um “não” de uma pessoa amada não é legal, mas está longe de ser algo trágico. Nosso time perder um jogo, por mais importante que seja, não é uma tragédia. Não conseguirmos comprar um sofá novo, um sapato ou fazer uma viagem, também não é uma tragédia.
Quantas vezes ouvimos e lemos[2] que a derrota do Brasil por 7×1 diante da Alemanha na Copa do Mundo de futebol masculino de 2014 foi uma tragédia? Talvez no campo esportivo possa ser assim classificado aquele resultado surpreendente. Contudo, também há quem perceba que a derrota gigantesca virou até chacota, o popular “meme”[3].
No imaginário popular, tragédia sempre é algo funesto, catastrófico e triste. Porém, para os gregos antigos, tragikós ou tragoidía tinha outra significação, pois “tragédia era um gênero artístico, uma forma de drama, encenada para caracterizar o conflito existente entre uma personagem, o herói, condenado ao seu infortúnio, e alguma instância maior de poder: os deuses, o destino, as leis e a própria sociedade”[4]. No teatro grego antigo, a tragédia e a comédia se organizavam em torno do deus Dionísio, sendo a tragédia o gênero que despertava piedade e terror, ao passo que a comédia baseava-se no humor e na sátira, tendo papel importante na ideia de democracia.
O teatro é uma expressão da vida, mas não é a vida, sendo sua representação. Por isso, para além de um gênero artístico importante, quando falamos de tragédia estamos construindo uma noção de algo muito ruim. Não há como romancear a tragédia, não podemos ser levianos com a dor alheia. O que o memorial em espaço público nos convida é a não esquecer da dor, a não ser condescendente com a impunidade dos culpados e a buscar meios para que nunca mais se repita algo parecido.
Entre carros e pessoas que passam apressadas pela Avenida Sete de Setembro, talvez não se valorize o simbolismo deste monumento memorialístico. Como em tudo da nossa rotina, temos a tendência de naturalizar a paisagem urbana, não mais refletindo sobre suas ocorrências. É curioso que o memorial está exatamente ao lado de uma escola e de uma praça infantil. O contraste nos domingos, quando a Avenida é fechada aos carros, entre a alegria de crianças andando de bicicleta, jogando bola e usufruindo os brinquedos, com aquela lembrança de outras crianças que se foram, é muito significativo.
Em mais alguns dias, na mesma praça pública, teremos algumas atividades de Páscoa. Em seguida, teremos a 26ª Feira do Livro de Erechim. Assim é o espaço público: múltiplo, plural, contrastante e invisibilizado pelo cotidiano. Quem dera que cada criança que teve sua vida ceifada na tragédia de 2004 pudesse também ganhar um voucher para comprar um livro na Feira…
Entre aspas
Para vocês, este caso da barragem da Corsan é a maior tragédia de Erechim? Se não, qual seria? Pense e compartilhe com as pessoas próximas. Lembrar juntos e juntas, assim como dialogar, nos humaniza.
Thiago Ingrassia Pereira
Professor da UFFS Erechim
Coordenador do Projeto de Extensão “Dizer a sua palavra”: democratização da cultura popular e da comunicação
[1] https://www.pmerechim.rs.gov.br/noticia/19936/memorial-faz-homenagem-as-vitimas-da-tragedia-com-onibus-escolar-em-2004
[2] https://piaui.folha.uol.com.br/brasil-alemanha-7-1-copa-do-mundo/
[3] https://revistaforum.com.br/opiniao/2024/7/8/os-dez-anos-do-que-ao-contrario-de-outras-derrotas-nunca-virou-tragedia-161740.html
[4] Vide o artigo de opinião publicado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG): https://www.ufmg.br/boletim/bol1915/2.shtml#:~:text=Trag%C3%A9dia%20era%20um%20g%C3%AAnero%20art%C3%ADstico,leis%20e%20a%20pr%C3%B3pria%20sociedade.