NA CIDADE QUE SENTIMOS FRIO: PEQUENA CRÔNICA DE INVERNO
Chove na tarde fria de Porto Alegre
Trago sozinho o verde do chimarrão
Olho o cotidiano, sei que vou embora
Nunca mais, nunca mais
Ramilonga, Vitor Ramil
Poderia ser uma tarde fria de Erechim, por que não? Vivemos em uma região da América do Sul e do Brasil em que faz frio. Sentir frio é algo peculiar dentro de um país com dimensões continentais como o nosso. Logo, construímos identidades também por traços que particularizam territórios. A imagem que se tem do Brasil no exterior é, de forma geral, de um país tropical, quente e com pessoas desnudas. Logo, mar, sol e carnaval são as expressões genuínas que representam a brasilidade exportada. Nessa caracterização, nós, os e as que sentem frio, contribuem muito pouco para essa identidade um pouco caricata.
Então, longe do “centro do país”, representado por São Paulo, Rio de Janeiro e pela capital criada para tal, Brasília, nos resta uma maior proximidade geográfica e simbólica com a Argentina e o Uruguai. E o frio é um traço comum do Prata, uma região de fronteira que é, por definição, local de intersecções e trocas. Assim, criamos uma “estética do frio”, concepção trabalhada por Vitor Ramil em um ensaio sobre a identidade gaúcha e brasileira.
Sabemos que faz algum frio no sudeste do país, mas nada que se compare ao “frio que vem lá do sul”, como cantou Djavan. Viver em uma cidade do Alto Uruguai do Rio Grande do Sul é conviver – viver junto – em alguns meses do ano com o frio, com temperaturas perto de zero grau, com chuva, ventoe geada. Isso vai construindo uma forma de se relacionar não apenas com o clima, mas com as outras pessoas, com a nossa saúde, com o que comemos e bebemos, com nossas vestimentas e, até mesmo, com coisas mais cotidianas como tomar banho, lavar as mãos ou ir ao banheiro.
Há momentos em que a neblina não nos deixa ver ao redor, que somos surpreendidos(as) pelos pés que parecem congelar, pelas mãos que procuram bolsos, por tocas que precisam afagar a cabeça, por cachecóis que não podem sair do pescoço, enfim, pela meia que parece algo vital. O chá, o café e o chimarrão ganham outro sentido, o quentão faz a sua aparição anual e, claro, os vinhos tintos agasalham nosso paladar, esquentando corpos e almas.
Essa estética que confere identidade e que pode serrequintada e idealizada, também é algo desafiador. E aqui não me refiro ao gosto pessoal por temperaturas mais elevadas, mas, sobretudo, às carências que o frio torna mais duras. Uma coisa é viver o frio com casa confortável, chuveiro bom, climatização, roupas e alimentação apropriadas. Mesmo assim, não é tão simples. Agora, quando essas coisas faltam? Aí o frio apresenta uma outra estética, desafiando a sobrevivência.
Todos os anos, no inverno, os postos de saúde e os hospitais ficam cheios de pessoas com problemas respiratórios. É gente tossindo, espirrando e assoando o nariz. Em nenhum outro lugar do Brasil a otorrinolaringologia é tão prestigiada como pelas nossas bandas. Isso exige atenção médica e movimenta forte indústria farmacêutica. Todo mundo sofre, mas crianças e idosos(as) um pouco mais. O frio chega e se instala sem pedir muita licença. Quando a gente vê, a mão está gelada, como a minha que está digitando esse texto no computador agora.
Mas eu sou privilegiado, tenho como me esquentar rapidinho. E quem não tem? É só a gente andar com atenção pela nossa cidade e vamos perceber casas sem boas condições, pessoas com pouca roupa e, como sabemos, com pouca comida e acesso de qualidade à saúde. Não tem nada de glamurosa a pobreza em nenhuma estação, mas é muito pior no inverno. O poder público e a sociedade em geral precisam ter atenção com o segmento da população que sofre mais no inverno. E, claro, teríamos que trabalhar por um sistema social que pudesse, de fato, incluir a todas e todos.
Entre aspas
Sou favorável a campanhas do agasalho. Ser solidário(a) é um gesto humano importante. Contudo, defendo que a justiça social se implante antes da caridade. Então, acredito em doações e outras campanhas para minimizar as carências, mas igualmente acredito que o debate público de qualidade e com compromisso social é indispensável para que essas mesmas campanhas não precisem mais ocorrer. Ninguém merece passar frio.
Thiago Ingrassia Pereira
Professor da UFFS Erechim
Coordenador do Projeto de Extensão “Dizer a sua palavra”: democratização da cultura popular e da comunicação