Eu existo, Eu sou trans, Eu sou mulher

Duda[1] trabalhava no posto de gasolina durante a semana, pontual e responsável no seu trabalho, tratava a todos e todas com muito respeito. Aos finais de semana, gostava de se encontrar com amigas, ou ficar sozinha em seu quarto lendo um livro de aventura, adorava músicas épicas e colecionar cartas. Duda um dia foi ao seu trabalho, mas nunca chegou nele, e nem voltou para casa. Duda foi brutalmente assassinada porque era uma mulher transgênero.

As mortes em 2023 relacionadas à comunidade das mulheres trans teve 155 casos no Brasil, sendo 145 casos de assassinatos e 10 suicídios, sendo a mais jovem trans dessa lista assassinada aos 13 anos, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA[2]), que nos revela que a expectativa de vida dessas mulheres é de 35 anos.

“O que você faria se tivesse 35 anos para viver desde o nascimento? Metade de 70 anos, nem os aldeões na Idade Média tinham essa média de vida” afirma a convidada a participar da pesquisa, mulher trans de 20 anos de idade, vivente da cidade de Erechim, a qual manteremos anonimato.

“Erechim é uma cidade que está crescendo, mas ainda é muito comum você chegar em lugares e as pessoas não saberem o que fazer com você, com seus documentos, ou como te chamar, principalmente quando se trata da saúde”, diz ela, reclamando da burocracia que é lidar com documentos de identificação depois de mudar o nome.

Na escola, instituição então privilegiada de aprendizagem, onde deveria ser acolhida, diz que “certos professores eram contra esse processo, o problema era a imagem que eu trazia para a escola, como se a prostituição fosse a única profissão que eu pudesse ter”,  como se ela não pudesse existir ali dentro, fosse isenta do processo de aprendizagem, engolida pelo estigma da prostituição, mas ela sempre quis “estudar e fazer faculdade”.

Os princípios postos por Yogyakarta[3], mostra a aplicabilidade dos direitos humanos ao Brasil, ou seja, os seres humanos de todas as orientações sexuais e identidades de gênero têm o direito de gozar plenamente de todos os direitos humanos, ou seja, quando não se trata de assassinato, se trata de dignidade de vida: ter um emprego, estudo, relações, ter o direito de sair na rua se divertir, etc…

“Às vezes você não consegue um emprego porque não é ‘exemplar’ para a empresa, mas você sabe que não é isso… Os candidatos a prefeito e vereador dessa próxima eleição devem pensar nessa comunidade de mulheres trans que existe em Erechim, qual é o papel deles nesse preconceito? Pensar na vida dessas pessoas! Um trabalho, um estudo, vagas em empresas obrigatórias, faculdades com vagas inclusivas (cotas para pessoas trans), tem tanta coisa…”, afirma a convidada.

Essas mulheres existem em Erechim, e em vez de tirarmos os rostos e invisibilizarmos os corpos, por que não cuidar do nosso próximo? “Eu queria saber o que eu fiz… Sabe, eu gosto de ouvir músicas, ver filmes, queria envelhecer e comprar uma Chácara para morar, bem velhinha, mas nós somos mortas por alguém que achou que a gente não deveria ficar vivas”, diz ela, com pesar.

Entre aspas

Ao ouvir a convidada que participou desse texto, me lembro vividamente de uma história… Um dia, me disse ela, viu “uma delas”, uma mulher trans trabalhando com malabares no semáforo. A nossa convidada foi até um mercado e comprou uma coca-cola para esta mulher, pensou que estava muito calor para se estar ali.

Trocaram algumas palavras, a mulher pergunta “O que é que você faz?” para a nossa convidada, e a mesma afirma estudar e trabalhar. A mulher então brilha os olhos e diz “Nossa, que legal”.

“Pensar que por tão pouco e estaríamos com os lugares trocados é solidariedade. É isso que me motiva, eu aposto que existe alguém como eu que adoraria ouvir a sua história, a vida é uma história que vale a pena ser contada, principalmente quando é o seu nome que está nos créditos, seu verdadeiro nome”[4].

Kaylani Dal Medico

Discente do Curso de Licenciatura em Pedagogia da UFFS Erechim.

Bolsista do Projeto de Extensão “Dizer a sua palavra”: democratização da cultura popular e da comunicação

kaylanidalmedico@hotmail.com

[1] Nome fictício criado para a narrativa.

[2] Dossiê: assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023 / Bruna G. Benevides. ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) – Brasília, DF: Distrito Drag; ANTRA, 2024. Disponível em: https://antrabrasil.org/wp-content/uploads/2024/01/dossieantra2024-web.pdf Acesso em: 17 jul. 2024.

[3] International Commission of Jurists (ICJ). Yogyakarta Principles – Principles on the application of

international human rights law in relation to sexual orientation and gender identity. p.12 Disponível em:

http://www.yogyakartaprinciples.org/,2007 . Acesso em 17 jul. 2024.

[4] Fala final de nossa convidada.

Você pode gostar também

  • https://cast.youngtech.radio.br/radio/8070/radio
  • https://jornalboavista.com.br/radioculturafm/
  • Rádio Cultura Fm - 105.9 Erechim - RS