Envelhecer é esquecer

Penso com certa frequência no processo de envelhecer. Talvez por estar me aproximando dele lenta e gradativamente. Certo dia ouvi dizer que envelhecer é esquecer.

Isso ficou mais claro quando atendi alguns pacientes idosos, uma em especial povoa minhas lembranças. Ao envelhecer a memória vai dando espaço para o vazio, para o passado. O presente vai tomando formas de passado-presente. Nessa fase, as relações sociais diminuem e a memória que precisa de estímulos para existir, enfrenta suas perdas, por vezes irreversíveis. O envelhecimento implica deixar de lado algumas lembranças, esquecer nomes, lugares, pessoas e até a si mesmo.

Atendi uma idosa de estatura pequena, elegante e sempre alegre no auge dos seus 81 anos de vida longa e bem vivida. Quando chegava à recepção sempre lhe oferecia meu braço, que aceitava sem rodeios, postando sua mão delicada sobre meu braço.

Teve um marido amoroso e trabalhador, mas já havia falecido fazia vários anos quando a conheci, ela ainda falava dele com uma saudade comprida. Várias foram as sessões em que ele esteve presente pelas fotos que foram trazidas, pelas cartas escritas, pela rememoração dos fatos vividos. Teve oito filhos e todos conviviam com a mãe de forma harmoniosa, porém ela tinha seus prediletos. Fora uma mãe que costurava roupas, fazia almoços e cuidava de forma persistente dos filhos que, segundo ela, não lhe deram trabalho algum.

Havia perdido um neto que lhe era próximo, não entendia sua opção por não tratar-se de uma doença crônica e progressiva, pois não havia dado a devida importância, por comprometimento mental associado. Seu luto lhe trazia sofrimento e tristeza.

Dizia que a vida lhe tinha sido generosa e que não se queixava de nada e que não era azeda. Eu sempre a via como uma doce senhora que soube com sabedoria fazer os movimentos de subida e descida com a vida. Era uma pessoa leve de corpo e de alma.

Ela cantava em coral, dizia que “quem canta, o mal espanta”, bastante ativa, adorava dançar, mas achava que isso já era demais para sua idade, se preocupava com o que sua família iria pensar desse desejo. Afinal, idosos não devem ter desejos, só que eles os seguem até o caixão. Foi incentivada várias vezes a procurar a dança, mas não conseguiu superar seu preconceito interno para dançar a existência finita. Fazia sapatinhos de tricô para crianças carentes e os doava na igreja que frequentava.

Certa vez viajou com uma das filhas e teve alguns problemas, ficou agitada, nervosa e um pouco desorientada. A cidade em que estava teve problemas sérios com violência e mortes no presídio. A televisão local só transmitia notícias referentes aos crimes ocorridos. Assustou-se muito, a frágil senhora. Não era apenas isso, a memória ia dando sinais de que algo não estava bem, talvez Alzheimer ou apenas o processo longevo lhe cobrando a cota.

Desde então, os cuidados familiares começaram a redobrar, pois morava sozinha e sua autonomia foi dando lugar a cuidados de terceiros. Foi algo difícil para ela aceitar e entender que diante de um percurso de auto-cuidado, agora precisa ser cuidada por estranhos com os quais, até então, não tinha laços afetivos.

Houve muitas trocas de cuidadores, muitos dissabores e muitas dificuldades. Resistia bravamente aos cuidados de terceiros “que não da família, eu entendo que eles não podem me cuidar e eu também não quero morar com eles”. O tempo passou e quando lhe agradou a cuidadora as coisas se ajustaram. Um longo teste de paciência e persistência foram necessários.

As histórias ficaram mais repetitivas e uma delas era recorrente em suas sessões. Sempre trazia as imagens que povoavam a mente de menina que brincava com seus irmãos em dias de chuva no Nordeste, provavelmente eram raras essas ocasiões. Eles faziam barcos de papel, soltavam-nos no rio e viam-nos partir e contornar os obstáculos. Uma brincadeira simples, mas ela expressava profunda felicidade e alegria ao relatar essa história, sessão após sessão.

A história era a mesma, mas ela não era a mesma, tão pouco eu mesma. Era sempre um novo tempo, o tempo presente e isso preenchia de significado o nosso encontro. Um dia a incentivei a fazer um barco de papel e perguntei-lhe se ainda sabia fazê-lo. Ela imediatamente disse: “Eu sei, sim”.

Dei-lhe uma folha de papel laranja, descrente de sua capacidade de realmente fazer o barco. Sua capacidade de recordar-se estava se perdendo no tempo. O dia da semana, o ano em que estávamos, as fotos e já não se lembrava quem eram todos aqueles personagens, não desligava o gás, queimava a comida, deixava a porta aberta, esquecia onde guardava os objetos…

Sentei-me a sua frente e esperei pelo tempo que passou lentamente, minha espera era ansiosa. Suas mãos magras se movimentavam lentamente, com dobras para lá e para cá e ao final dos movimentos de dobrar e desdobrar surgiu um lindo barco. Apenas uma das dobras não estava de acordo, mas isso não importava, era o seu barco, era o mesmo que ainda povoava sua memória antiga de menina.

O barco simboliza o meio pelo qual é possível chegar a outros mundos, significa proteção e segurança. O barco de papel a acompanhou em toda a jornada da existência, da menina a idosa que era, ele se fez presente. Nesse momento sinalizando a travessia do envelhecer.

Talvez a idosa que morava em seu ser precisasse recuperar a menina para encontrar o abrigo e o aconchego que a perda de memória lhe trouxe. Menina que brincava de barco de papel em sua singeleza e beleza a dar-lhe forças para enfrentar os mares revoltos de sua vida atualmente, por vezes esquecendo-se do percurso realizado.

O barco de papel a lembrava do quanto as coisas simples lhe faziam bem e deram sentido a sua vida, mesmo que a memória desse sinais de apagamento e desinteresse por coisas atuais, o passado ainda vivia nela de forma muito forte e intensa a lembrar do que a fazia sorrir e acalantava a existência.

 

Maria Emília Bottini

E-mail: emilia.bottini@gmail.com

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