Em três anos, graças à liminar obtida no Supremo Tribunal Federal (STF), o governo do Rio Grande do Sul deixou de pagar R$ 9,4 bilhões devidos à União, o equivalente a sete folhas salariais do Executivo. Válida desde julho de 2017, a decisão judicial impediu o colapso das contas públicas, mas também contribuiu para o crescimento da dívida total do Estado, que voltou a bater recorde.
Em dezembro, conforme relatório divulgado na última semana pela Secretaria Estadual da Fazenda, a soma chegou a R$ 77,2 bilhões — oito vezes o orçamento anual da Educação. Corrigido pelo IPCA, o avanço foi de 2% em relação ao valor de dezembro de 2018 (veja o gráfico abaixo).
O contrato com a União precisa ser quitado até 2048, e, sobre o saldo, seguem incidindo juros e correção. Os encargos mensais representam cerca de R$ 180 milhões. Ainda assim, na avaliação de Bruno Jatene, subsecretário do Tesouro Estadual, vale arcar com os custos.
— Sem a liminar, teríamos sete folhas de pagamento dos servidores em atraso. Isso comprometeria várias outras funções públicas, como educação, segurança e saúde. Com a crise sanitária que vivemos, seria impensável enfrentar algo assim neste momento. Vale o ônus? Vale, porque estaríamos em insolvência fiscal e com serviços colapsados. Além disso, é importante dizer que, se tivéssemos aderido ao regime de recuperação fiscal, os custos seriam os mesmos — argumenta Jatene.
Desde 2017, quando saiu a decisão do ministro do STF, o governo do Estado tenta ingressar no programa de ajuste federal por temer a derrubada da liminar, de caráter provisório, e para obter novos financiamentos. Até hoje, apenas o Rio de Janeiro conseguiu aderir e agora, passados três anos, busca renovação por mais três.
No caso do Rio Grande do Sul, o secretário estadual da Fazenda, Marco Aurelio Cardoso, segue defendendo a adesão ao regime, em novo formato. Há um projeto tramitando no Congresso que propõe alterações nas regras, alongando o prazo e facilitando a adesão. Ainda que o débito siga crescendo, Cardoso e sua equipe consideram inviável retomar os repasses mensais (no valor de R$ 290 milhões) e não abrem mão do acordo com a União.
Na avaliação do presidente do Corecon-RS, José Junior de Oliveira, não há alternativa. O economista concorda que postergar os pagamentos da dívida é ruim, mas vê na adesão a possibilidade estrutural de reequilibrar as finanças.
— O governo do Estado tem de aderir ao regime buscando as melhores condições possíveis. É como uma pessoa que está superendividada e que, em algum momento, tem de fazer a escolha de menor custo. É claro que há pontos polêmicos e que é necessário negociar os termos, mas não tem outro caminho.
Acredito, também, que o governo federal vai acabar estendendo o prazo de quitação, inclusive em razão da crise que estamos vivendo — diz o economista.
Quanto já se pagou à União?
Em 1998, ao assinar o acordo com a União, o Estado ficou obrigado a pagar cerca de R$ 9 bilhões (equivalente a R$ 46 bilhões em valores corrigidos) em 30 anos, com juros anuais de 6% e correção pelo IGP-DI. Com o passar do tempo, o indexador cresceu além do esperado, e o passivo se multiplicou. Em renegociação recente, o governo conseguiu revisar as regras do contrato, mas, mesmo assim, em dezembro de 2019, depois de ter repassado mais de R$ 30 bilhões à União, o Estado ainda devia R$ 66,9 bilhões aos cofres federais. Por conta disso, há setores que questionam o pagamento e exigem auditoria da dívida.
Com a liminar no STF, quanto se deixou de pagar à União?
A liminar autorizando a suspensão dos pagamentos está em vigência desde julho de 2017. O pedido de suspensão foi feito pela Procuradoria-Geral do Estado, alegando impossibilidade financeira de manter os repasses. O fôlego ao caixa foi de R$ 1 bilhão em 2017, R$ 3,2 bilhões em 2018, R$ 3,45 bilhões em 2019 e, até agora, em 2020, de mais R$ 1,75 bilhão, somando R$ 9,4 bilhões. Até o fim deste ano, serão cerca de R$ 11 bilhões, se a liminar não cair. O valor não será perdoado pela União. No futuro, terá de ser pago com juros e correção.
Quantos contratos são?
São 41 contratos de empréstimos, além de parcelamentos de débitos previdenciários com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e da contribuição social ao Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep). Entre eles, também está a dívida com a União, que assumiu parte dos débitos do Estado em 1998 e representa 86,6% do total do passivo público. Em dezembro de 2019, o saldo devedor equivalia ao dobro da receita corrente líquida do Estado no ano (isto é, toda a arrecadação em tributos, descontadas as transferências legais).
O que envolve a dívida externa?
A dívida externa compõe-se de contratos de financiamento com organismos multilaterais e bancos de desenvolvimento internacionais. Os principais envolvem o Banco Mundial (Bird) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Aí entram desde o Programa Pró-Guaíba, iniciado em 1995 para revitalizar a bacia hidrográfica, até o Programa de Apoio à Retomada do Desenvolvimento Econômico e Social (ProRedes), com empréstimo assinado em 2012 para reformas de escolas e manutenção de rodovias, entre outros fins.
Quando essa bola de neve começou?
A situação da dívida pública do RS começou a sair do controle a partir da década de 1970, na ditadura militar. Na onda do “milagre econômico”, as restrições ao endividamento foram afrouxadas, e a União estimulou os Estados a buscarem empréstimos externos.
Sob o comando do governador Euclides Triches, da Arena (partido de sustentação do regime), o Estado entrou no mercado de capitais e passou a emitir títulos com correção monetária. Os papéis tiveram rápida aceitação no mercado, e o governo conseguiu viabilizar seu projeto desenvolvimentista. Foram construídos mais de 6 mil quilômetros de estradas, mas, com as duas crises do petróleo, em 1973 e 1979, a situação saiu do controle.
Na década seguinte, marcada pela hiperinflação, veio à tona a explosão do endividamento. Os prazos começaram a expirar. A solução foi rolar a dívida, isto é, adiar o pagamento, o que desencadeou um ciclo vicioso perverso, que perduraria por 20 anos. Para substituir os papéis vencidos, novos títulos passaram a ser emitidos, sempre com juros mais altos.
— Eram dívidas para pagar dívidas. Foi aí que tudo começou — sintetiza o economista Darcy Carvalho dos Santos.
Fonte: GaúchaZH