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A partida final

Gosto de filmes sobre temas difíceis, eles me estimulam a pensar sobre a vida que levo. Estudei no meu doutorado em educação o filme japonês “A partida” (2009), sensível sobre a temática da morte e o morrer. Deste estudo resultou no livro “No cinema e na vida: a difícil arte de aprender a morrer” (2015), em que estudei o cinema, a educação e a morte. Coordeno o projeto que nominei “No cinema e na vida” que iniciou em novembro de 2017, aproveitando o meu livro e a experiência com o cine debate de Brasília, onde morei por um longo tempo. Esse projeto tem como objetivo exibir filmes de diversas nacionalidades e refletir com a comunidade em geral sobre a temática exibida. Os filmes sempre me acompanham e gosto dos que me fazem pensar.

Alguns filmes são especialmente difíceis de assistir, pois tratam de temas que negamos como a morte e o morrer. Em maio entrou no novo catálogo do Netflix e encontrava-se disponível “A partida final” (2018.) Imediatamente fui atraída pelo título e o assisti.

O documentário narra a fase final da vida de alguns pacientes em São Francisco que estão sobre os cuidados paliativos que consistem na assistência promovida por equipe multidisciplinar, que tem como objetivo melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares quando uma doença ameaça a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento e tratamento da dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais. Neste período é preciso cuidar da dor, do bem-estar, resolver pendências e permanecer com pessoas que nos façam bem quando há, pois o documentário demonstra a solidão no final da vida de alguns pacientes.

O documentário de Rob Epstein e Jeffrey Friedman trata da morte como última cena. Estamos diante de pessoas que estão vivas em suas lutas internas para lidar com sua finitude que se aproxima e com as despedidas necessárias. São apresentados os sentimentos dos enlutados. Decisões precisam ser tomadas sobre permanecer internado ou voltar para casa, doar o tumor para futuros estudos científico ou não.

Muito comovente e tocante ele nos inspira a refletir sobre a nossa jornada de vida ao acompanharmos os pacientes que estão lidando com o processo de morrer que está prestes a acontecer. Reações de aceitação ou negação. A crença na melhora ou a entrega gradativa ao fim dos dias. Tudo toma a proporção de importância, o tempo se esvai.

Não estamos dizendo que este processo seja fácil, mas se for acompanhado de alguns que nos são caro, talvez isso fique um pouco mais fácil. A aceitação de que não temos alternativa a não ser seguir para a morte talvez nos conforte, e nos dê forças para o enfrentamento único e intransferível. A morte é um evento difícil de ser enfrentado por todos nós, mas cedo ou tarde ela vira.

Um dos médicos conversa com uma paciente para ela fazer amizade com a morte, ou pelo menos ter algum tipo de relação com ela. A paciente diz que gosta muito da vida, mas ela está na fase final ainda vinculada ao pouco de vida que lhe resta e isso a faz viver mais alguns dias, em uma luta interna para permanecer, para estar, pois em breve não estará, não existirá.

Fiquei pensando se podemos nos amigar com a morte. Penso que seja fácil tal amizade. Mas não descarto que possa acontecer, mas para isso me parece que é preciso um estímulo que pode advir através da fragilidade apresentada pelas doenças, internações, acidentes ou mesmo experiência de quase morte. Onde sentimos que nos aproximamos da morte ou ela se aproxima da gente. São esses momentos que podemos aproveitar a chance da fragilidade, uma vida de andar, falar, comer, trabalhar, para a de ser cuidado, banhado, medicado e aprender com a experiência que talvez não traga a morte, mas faz um aceno a ela.

Quando nos sentimos fragilizados é que podemos nos aproximar do tema, porque nos tornamos vulneráveis, mas talvez logo nos recuperemos nos afastamos. Assim como não podemos olhar para o sol o tempo todo, não podemos pensar na morte o tempo todo, pois ela paralisa e é preciso seguir em frente. De vez em quando dar-se conta que temos apenas um tempo para permanecer, para estar e para fazer algo que tenha sentido talvez seja interessante.

A morte nunca se afasta de nós, sua memória é infalível, se tocarmos nossas mãos com um pouco mais de firmeza perceberemos que a morte está dentro de nós representada no esqueleto, não está fora como gostaríamos, mas sim dentro, a nos habitar. Claro que este raciocínio é afastado, distanciado, quem sabe para facilitar a caminhada.

Miller, médico que teve sua vida drasticamente modificada aos 19 anos, quando sofreu um acidente grave com amputação das duas pernas abaixo do joelho e parte do braço esquerdo, nos relata ao final do documentário e com imagens de uma paciente que morreu aos seus cuidados. “Quando alguém morre nos reunimos em volta do corpo… e salpicamos flores nele sabe? É muito lindo, muito simples. É uma forma de compreendermos que a pessoa se foi. Assim, a última imagem das pessoas enlutadas é do corpo cheio de flores. É tão… A dor fica salpicada de beleza. A dor não é fácil. Mas pode ser convertida e linda. Somos programados para fugir da morte. Mas morrer faz parte da vida”.

Não sei se há beleza na morte, talvez seja possível se treinarmos um novo olhar para velhos tabus, mas sei que ela dói porque nos apegamos às pessoas como se delas nunca fossemos nos separar, sei que precisamos de rituais que nos apontem para a aceitação da finitude do outro que também é nossa.

Ao encerrar o documentário a morte dos pacientes é anunciada e todos realizam sua partida final. É impossível passar pela vida sem perder alguém que amamos, e sempre que isso acontece é um sinal de que também morremos, essa é nossa dor. Ao nascermos já ganhamos o bilhete da partida final que se aproxima dia após dia silenciosa, por vezes, e em outra inesperada sem tempo para preparações e despedidas. O fato é que não sabemos quando será nossa partida final, então aproveite a estadia do percurso da melhor forma que puder.

Maria Emília Bottini

Psicóloga clínica

Professora da Universidade Regional Integrada (URI)

Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF)

Doutora em Educação pela Universidade de Brasília (UnB)

Autora do livro No cinema e na vida: a difícil arte de aprender a morrer

E-mail: emilia.bottini@gmail.com

 

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