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O barbeiro de Lisboa

Pequena crônica sobre o “ganhar a vida”

I

Deixar a barba me permitiu novas sociabilidades. Passei a frequentar barbearias e, com isso, interagir com figuras curiosas. As barbearias atuais são espaços multiusos. Corta-se o cabelo e a barba, joga-se sinuca, tem chope, tem TV a cabo, geralmente passando futebol, enfim, recria-se um tradicional universo masculino (estereotipado), só que um pouco gourmetizado. Mudam-se os ambientes, mas permanecem as conversas sobre tudo e todos. Nesse espaço, afloram visões de mundo, surgem “profetas” e pessoas que (acham) que têm a “verdade”. Futebol, política e religião fornecem as pautas em meio às lâminas no pescoço ou um degradê no cabelo.

II

Nesta minha passagem por Portugal, durante o estágio de pós-doutoramento na Universidade de Lisboa, fui a duas barbearias. Na primeira, em um shopping na frente do Estádio da Luz, não me senti muito confortável. Os barbeiros conversavam entre si como se não estivesse lá, fora que o corte (no meu caso, uma aparadinha) não me agradou muito. Busquei uma alternativa e a achei perto de onde morei na capital portuguesa. Foi na freguesia de Arroios que conheci um rapaz baiano que foi “ganhar a vida” em Portugal. Chegou em 2009 por aquelas bandas, alimentando o sonho de uma vida melhor em um país “mais” desenvolvido. Mas, entre sonhos e realidades, temos que lembrar Caetano em “Sampa”, quando nos diz que quem vem de outro sonho feliz de cidade, aprende depressa a chamar-te de realidade.

III

A realidade em Portugal passou longe do conto de fadas para o rapaz imigrante. Nosso “Cabral às avessas” logo descobriu que, tanto lá como aqui, quem tem dinheiro é que pode realizar os sonhos no capitalismo. Depois de trabalhar muito e ganhar pouco em serviços braçais, sem final de semana e feriado, o jovem conseguiu fazer um curso de barbeiro e mudar um pouco de vida. O diploma está bem visível sobre os vidros da barbearia. Evangélico, está noivo de uma brasileira que também migrou e que está com um pé de volta ao Brasil. Difícil situação para o barbeiro de Lisboa que se divide entre barbas, angústias e sonhos. Ele não quer voltar, pois diz que não conhece mais o Brasil. Ele vê televisão em Portugal e suas dúvidas logo se transformam em inúmeras perguntas ao descobrir que cortava em 1,5 a barba de um sociólogo brasileiro. O que aconteceu com o Lula? E o desemprego? E a violência no Brasil? Será que todos os políticos são corruptos? Questões que dariam algumas teses e que, sendo sincero, sobre as quais eu também tenho mais dúvidas do que certezas, e ando desconfiando de quem não se sente assim.

IV

Estive duas vezes na barbearia do nosso amigo baiano. Ele gosta de ver os vídeos do Filósofo e Educador Mario Sergio Cortella no Youtube. Diz que gosta de pessoas inteligentes e de refletir sobre a vida. Gostei de sua “Filosofia espontânea”, pois ela é autêntica e digna, brotando de seus “espantos” diante da vida. O meu barbeiro de Lisboa é um exemplo do pensamento médio que circula entre os(as) brasileiros(as): tudo que é de “fora” é melhor. Portanto, mudar de país é sinônimo de viver melhor, de, enfim, “ganhar a vida”. Nosso “complexo de vira-latas” segue se atualizando. Mas tem um detalhe: ele pensava assim, hoje pensa (porque vive) diferente. Entendeu que quem vive bem no Brasil é quem vive bem fora dele, assim como quem vive com dificuldade no Brasil irá viver assim em qualquer lugar do mundo. Não podemos confundir turismo e passeios com morar em determinado lugar. Muitos(as) cariocas nunca andaram no bondinho do Pão de Açucar…

V

A Europa tem suas coisas boas. E as ruins também. Seguimos idealizando sobremaneira o que é de “fora”. Claro que temos problemas graves no Brasil. O mais vergonhoso é a nossa desigualdade social que se sustenta numa concentração de renda absurda e naturalizada. Temos um sistema tributário perverso, no qual quem ganha menos paga proporcionalmente mais. Continuamos discursando a favor da educação de qualidade e seguimos pagando salários ofensivos aos Professores e Professoras. Vivemos um Grenal sem vencedores na nossa política, aliás, todo mundo anda perdendo, mesmo os que acham que estão ganhando. Cada país tem a sua história, precisamos ter muito cuidado em comparações. Ao fim e ao cabo, boa parte das pessoas converge na intenção sincera e necessária de “ganhar a vida” e isso pode ser dentro ou fora do Brasil. O grande problema é que nosso sistema social faz com que, na busca de ganhar a vida, a gente também possa ser derrotado. Enquanto o competir se sobrepuser ao cooperar teremos muitas dificuldades em resolver nossas grandes questões. E isso independe de ser no Brasil ou em qualquer outro lugar do mundo. Assim como afeta os que têm barba e os que não têm.

Curiosidade

Principal produto da economia brasileira durante um bom tempo, o café ainda representa nosso país em alguns lugares. Em uma rápida passada por alguns supermercados franceses, pude ver a interessante oferta de cafés brasileiros nas prateleiras. Um café amargo em seu preço em Euros.

 

 

 

 

 

 

Compartilhando leituras

Não é tarefa simples, mas é essencial: temos que entender o Brasil. O que significou o governo Lula? O que

explica o governo Temer? O que fazer diante do atual quadro político? Como entender as ações de direita e qual o principal desafio da esquerda? Essas e outras perguntas são enfrentadas pela aguçada capacidade argumentativa do Professor de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) Vladimir Safatle em “Só mais um esforço” (Três Estrelas, 2017).

Por Thiago Ingrassia Pereira

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