NOSSOS PRECONCEITOS

Gosto muito de trabalhar com arte. Ela me inspira, expressa sentimentos e emoções, por vezes ocultos de nós mesmos. Dentre as artes, a arte de viver é a maior de todas. Viver cada dia e entender que ele é único e que não se repetirá. Estive em um evento para trabalhar com arte terapia.  Na arte terapia a pessoa é convidada a explorar aspectos do seu consciente ou inconsciente por meio da expressão artística como: pintura, desenho, modelagem, escultura, poesia, dança… O tempo disponibilizado para a atividade era curto; a amiga que me convidou lembrava que eu sempre utilizei as artes no ofício de ser psicóloga. Pintei tela com autista, fiz desenhos com crianças, contei histórias, mostrei imagens, usei o cinema e a música para a alma, dancei, li poesias, manuseamos barro…

Lembrei de uma técnica que uso com certa frequência em grupos. Primeiramente, fiz breve conversa sobre o quanto a arte pode ser uma ferramenta para acessar quem somos e para entender nossa narrativa singular.

Em seguida, distribui folhas de ofício. Solicitei que respirassem profundamente e se concentrassem em si mesmo; se desejassem, poderiam fechar os olhos e apenas sentir que estavam vivos, sentir os sons, sentir o coração. Na sequência, cada um deveria representar na folha, através das mãos, como estava se sentindo naquela manhã de primavera.

No início a folha em branco causa estranhamento, um desconforto a ideia que não somos capazes de reproduzir nada, que precisamos de caneta e papel para escrever, desenhar. Aos poucos as mãos se movimentam, trabalham o papel branco e produzem algumas formas entre rasgos e dobras. As folhas passam a ser outra coisa, passam a ser sentimentos, afetos e partes de si desvendadas e simbolizadas.

Na socialização, cada um trouxe a simbologia de suas obras realizadas, expressões de si. Avião, barco, boca, quadrado, flor, coração, casa, pássaro, caminho… Uma das participantes me encantou pelo que trouxe de si em tão pouco tempo. Ela, de fato, se permitiu viver a técnica e se colocar sem reservas, apenas estava lá presente. Ela fez um avião e falou de sua felicidade ao poder sair de casa naquela manhã, pois se sente presa ao trabalho. Disse que sentia como se estivesse voando, livre e liberta, pelo menos naquele momento poderia aproveitar o dia como há muito não fazia.

Sua atividade é ser cuidadora de duas idosas. Uma delas perdera sua memória nos tempos idos, está completamente dependente de seus cuidados. A idosa relembra sua filha que morreu, lembrança carregada de um profundo sentimento de afeto, ainda a povoar sua mente através de reminiscências.

Ter paciência é para ela um desafio diário ao ouvir as repetições que já não são poucas. Tem sobre seus ombros muitas responsabilidades, as quais a impedem de sair com mais frequência para aproveitar eventos sociais e de aprendizagem.

Os outros participantes também falaram dos objetos que criaram e de como se sentiam.

Após as falas, abrimos para um diálogo onde cada um falou de si um pouco mais, a partir da fala dos outros. Como dizia uma paciente: “o outro sou eu”. Fiz o fechamento falando da arte que realizaram, mas da arte de viver, de nossas diferenças e das semelhanças que nos aproximam em qualquer situação, mesmo em um encontro aleatório como o que vivemos.

Comentei a respeito de preconceitos que nos impedem de vivenciar experiências com os outros, que devemos evitá-los ao máximo, visto que isso não nos ajuda, ao contrário causa muito sofrimento. O preconceito se apresenta em coisas muito simples. Alguém comentou algo sobre indígenas da região no início da atividade e de forma pejorativa, achei pertinente falar da tolerância com as diferenças.

Essa participante pediu para falar novamente, disse que tinha algo a dizer sobre isso. Relatou que era filha de uma indígena e que tinha orgulho de sua raça. Sua mãe fora criada por uma família de brancos e nunca se aproximou da família de origem, não teve interesse. No entanto, ela passou a vida querendo visitar sua avó indígena que inclusive não morava distante de sua casa, mas nunca o fez. Disse que nunca tomou coragem por medo de magoar a mãe e por pensar que a família da avó a rejeitaria. Não seguiu o seu desejo, independente dos demais, e ficou no querer. Agora não poderá mais fazê-lo, pois a avó faleceu há uns dois meses e ela ainda não contou para sua mãe.

Talvez para sua mãe não faça diferença saber da morte, pois em vida isso já não lhe fazia sentido algum, pois vivera afastada de sua família talvez com suas mágoas ou resoluções.

Seu comentário foi um desabafo, acompanhado por um profundo sentimento de perda de uma possibilidade, de ter feito a escolha equivocada por seus próprios preconceitos. Algumas decisões são tomadas considerando o que o outro vai pensar e de fato o outro pensa, mas isso não nos pertence. Melhor teria sido permitir-se ir até a avó, depois avaliar se foi bom ou não, mas pressupor antes foi o que a afastou de conhecer sua avó, conviver com ela e se permitir ouvir o porquê das coisas. Comentei para ela que só se permitindo para saber se seria rejeitada ou aceita. E mesmo se rejeitada fosse, havia tentado aproximar-se e que isso era importante para si. Agora, resta conviver com o não vivido, o não permitido. Não há mais possibilidade, a morte a encerrou.

Quando desejamos fazer algo em relação ao outro, seja quem for, deve ser feito em vida, os mortos não nos ouvem, não veem, até onde sabemos. Talvez esta participante tenha perdido uma oportunidade ímpar de voar em outro avião, aquele que nos inscreve na origem de quem somos.

Maria Emília Bottini

Psicóloga da Clínica Ser, Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF), Doutora em Educação pela Universidade de Brasília (UnB), autora do livro No cinema e na vida: a difícil arte de aprender a morrer.  E-mail: emilia.bottini@gmail.com.

 

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