As inundações que deixaram dezenas de mortos nos últimos meses no Rio Grande do Sul podem servir, ao menos, para reduzir o impacto de outros fenômenos naturais sobre a população gaúcha. Mas para isso, será preciso levar em conta um punhado de lições que vieram à tona com a elevação do nível dos rios no Vale do Taquari.
A principal delas é que os sistemas de prevenção — lembrados a cada tragédia, mas esquecidos tão logo as nuvens se dissipam — ganham ainda mais importância em um cenário de mudanças climáticas que favorecem a repetição de eventos extremos.
Para evitar ou amenizar as perdas materiais e humanas, será preciso investir em zoneamento de inundações, realocação de moradores de áreas de risco, adaptações de construções e criação de sistemas de alerta, entre outras medidas apontadas por especialistas.
Professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) na área de hidrologia e sócio-proprietário da consultoria Rhama, Carlos Tucci concluiu recentemente um plano de gestão de águas pluviais encomendado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA).
O trabalho, selecionado via licitação com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) aborda, entre outros temas, estratégias de prevenção a cheias em áreas urbanas e em margens de rios. Para isso, faz um apanhado de como o setor está organizado atualmente no Brasil, apresenta alguns exemplos internacionais e propõe divisões de responsabilidades entre municípios, Estados e União.
Uma das conclusões é de que, até agora, o país como um todo não tem uma estrutura bem organizada para fazer mapeamentos de riscos e implementar ações preventivas.
— Infelizmente, os planos de bacias (hidrográficas) não incluem a prevenção de eventos extremos. Falam sobre outorga e qualidade da água. Até citam a questão dos eventos extremos, mas não estabelecem instrumentos para lidar com isso — afirma Tucci.
O primeiro passo seria apontar com clareza as áreas dos municípios sujeitas a inundações, utilizar ferramentas como o Plano Diretor para evitar o uso desses espaços para moradia, transferir moradores quando necessário ou, ao menos, estimular adaptações construtivas como casas mais elevadas. No Rio Grande do Sul e no Brasil, muitas vezes, ou não há zoneamento de risco, ou não é levado em consideração no planejamento urbano. Também há pouco recurso disponível para a transferência de moradores de áreas alagadiças para pontos mais seguros.
Um levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM) mostra que, dos 1.580 municípios brasileiros incluídos no cadastro nacional de risco (listagem das cidades mais suscetíveis a ameaças naturais), 54% não tinham Plano Municipal de Redução de Risco, e 30% não contavam com Plano Diretor. Além disso, 460 dessas localidades não tiveram acesso a recursos do programa Minha Casa Minha Vida mesmo com 5,4 mil moradias danificadas ou destruídas entre 2013 e 2022.
— O problema é que, quando ocorre o desastre, as autoridades prometem milhões, bilhões de reais, mas depois executam só uma parte disso. Estamos nos empenhando em uma mobilização para discutir com universidades ações concretas no sentido de prevenir, melhorar a integração das cidades com os Estados e a União, remover as pessoas dos locais de maior perigo — afirma o presidente da CNM, o gaúcho Paulo Ziulkoski, que na tarde de domingo (10) estava embarcando para Brasília para uma reunião com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), em que abordaria esse tema entre outros assuntos.
Urbanista e doutor em Planejamento Territorial da Unisinos, Marcelo Arioli Heck acredita que há um número crescente de prefeituras buscando melhorar suas ferramentas de gestão do solo, mas por vezes também esbarram em interesses imobiliários:
— Alguns municípios têm maior dificuldade de identificar riscos, mas a grande questão é que uma cidade é um lugar de disputas, então costuma haver conflito entre a busca por um ambiente mais sustentável e a especulação imobiliária. Um crescimento desordenado acaba levando à ocupação de áreas impróprias.
Quando não é viável impedir a ocupação de zonas com algum nível de risco, Carlos Tucci sustenta que é necessário trabalhar com algum sistema de alerta que permita às pessoas saírem de casa a tempo de se salvar.
— Nos Estados Unidos, que é todo coberto por radares, é possível saber quando uma cheia está vindo, em qual bacia, e alertar as pessoas. Há muito mais informação — compara o professor da UFRGS.
Tucci observa que obras para conter grandes enchentes são extremamente caras e, dependendo das condições locais, nem mesmo são uma opção viável. O especialista avalia que o investimento em prevenção, incluindo a organização de um aparato de alerta (que pode ser por meio de mensagens de celular ou sirenes, por exemplo), pouparia vidas e recursos. Presidente da Federação das Associações de Municípios do RS (Famurs) e prefeito de Campo Bom, Luciano Orsi avalia que a tragédia das chuvas ressalta a importância de valorizar a estrutura e os alertas da Defesa Civil.
— Muitas vezes, em municípios menores, a Defesa Civil é composta por uma pessoa só, que geralmente desempenha alguma outra função, e depende de outros voluntários. Fica como lição, para todos, que as gestões de municípios, Estado e União precisam conversar e atuar de forma conjunta cada vez mais. O que aconteceu agora mostra que ninguém está livre de uma catástrofe — diz Orsi.
As lições da tragédia
Zoneamento de inundações
Municípios localizados em áreas suscetíveis a enchentes precisam ter um mapeamento detalhado das zonas de risco e utilizar essas informações para nortear o desenvolvimento da cidade. Isso pode fundamentar um Plano Municipal de Redução de Risco e orientar as regras para ocupação do solo (determinando que tipo de construção ou uso poderá ser feito) em cada local. Zonas de maior perigo não deveriam receber moradias, por exemplo, ou podem ser obrigadas a cumprir determinadas exigências que aumentem o nível de segurança.
O Plano Diretor também deve regular que tipo de construção é permitida em uma área sensível para evitar que barre a passagem da água e acabe agravando a enchente em outros pontos do curso d’água, conforme o especialista em hidrologia Carlos Tucci.
Transferência de moradores de áreas de risco
Diante de um cenário de mudanças climáticas em que se acredita que a repetição de eventos extremos será mais frequente, é preciso mapear quem vive em áreas mais sujeitas a inundações e promover o reassentamento dessas famílias. Esse é um trabalho difícil e com altos custos envolvidos, o que geralmente não é possível de ser bancado exclusivamente pelas prefeituras. Por isso, é fundamental o diálogo com Estado e União para viabilizar esse tipo de projeto – que pode ser integrado a alguma iniciativa já existente como o Minha Casa Minha Vida.
Adaptação de construções
Outra opção para quem vive em regiões onde podem ocorrer alagamentos é a construção ou reconstrução de casas mais adaptadas a possíveis inundações, como sobre pilares ou com dois pavimentos, ou ainda com estrutura reforçada. Esse tipo de regulação pode ser feita por meio de instrumentos de planejamento urbano como o Plano Diretor. No Japão, por exemplo, há exemplos de locais em que, além da construção de diques, moradores foram deslocados para mais longe e passaram a viver em moradias mais verticais.
Sistemas de alerta
Uma forma relativamente barata de prevenir a perda de vidas em situações de emergência é montar um sistema de monitoramento vinculado a algum tipo de divulgação de alertas — que pode incluir mensagens por telefone celular, sirenes ou alto-falantes, entre outras possibilidades. Para funcionar, é preciso investir em equipamentos, treinamento de pessoal e também em orientações prévias à população, para levarem a sério os eventuais avisos e saberem como agir quando necessário.
Muitas pessoas, sem o devido esclarecimento, costumam se recusar a deixar suas casas por medo de perdas ou saques. É preciso criar uma cultura de prevenção que pode exigir algum tempo de preparo.
Reforço das equipes de Defesa Civil
Em todo o país, o sistema de Defesa Civil convive com precariedade de equipamentos e de pessoal. No Rio Grande do Sul, conforme a Famurs, muitas vezes a função é exercida de forma permanente por um grupo reduzido de pessoas (ou apenas uma, em cidades de menor porte), que dividem seu tempo com outras atribuições. O setor também depende do trabalho de voluntários. Maiores investimentos em equipamentos, pessoal e treinamento é um passo importante para evitar e enfrentar tragédias.
Melhorias de financiamento
Atualmente, a maior parte dos recursos é gasta para mitigar em vez de prevenir tragédias. Ainda assim, em níveis insuficientes. Um estudo da CNM mostra que desastres naturais causaram R$ 401,3 bilhões em prejuízos em todo o Brasil nos últimos 10 anos. No mesmo período, a União destinou R$ 4,9 bilhões para ações de gestão de riscos. Um projeto apresentado no Congresso amplia a destinação de recursos para um fundo de Defesa Civil ao prever destinação de 5% da arrecadação da União com multas ambientais e acordos de reparação.
Carlos Tucci observa que, nos EUA, há ainda um sistema oficial de seguros contra enchentes implantado via Agência Federal de Gestão de Emergências (Fema, da sigla em inglês) – quanto maior o risco da área, maior o valor a ser pago pelo proprietário, o que naturalmente estimula a população a procurar pontos mais seguros. Quando ocorrem inundações, os seguros facilitam a reconstrução ou realocação das moradias atingidas.
Por GZH