Viver é preciso?

Por Thiago Ingrassia Pereira

 

 

I

Escreve o poeta português Fernando Pessoa (1888-1935), cujos restos mortais repousam em um corredor do majestoso Mosteiro dos Jerónimos no bairro Belém em Lisboa:

 

“Navegar é preciso; viver não é preciso”.

 

Nossa língua portuguesa, tão bem tratada por poetas do porte de Fernando Pessoa, exige conhecimento de suas manhas, de sua por vezes erudita gramática. Navegar é um ato preciso, no sentido de necessário, em virtude das exigências comerciais e de guerra de determinados tempos históricos. Por outro lado, também é preciso no sentido da precisão, exatidão e rigor. Presume-se, assim, que o conhecimento científico é mais preciso do que uma mera opinião. Por isso precisamos tanto produzir ciência em todas as áreas.

 

II

Pois bem, o cenário brasileiro atual não tem se mostrado preciso. Ou melhor: precisamos sair dessa encruzilhada política que nos metemos. Acompanhei aqui de Portugal, onde me encontro em estágio de pós-doutorado no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, o processo no TRF em Porto Alegre do ex-presidente Lula. O mundo olhou para a capital gaúcha, curioso com a situação política do nosso país. É inegável o prestígio do condenado ex-presidente Lula aqui na Europa. Colegas cientistas sociais tentam compreender o nosso quadro político e projetar o futuro do Brasil.

 

III

Nos dias que antecederam o julgamento do recurso em Porto Alegre, tive a oportunidade de participar, alertado pelo meu amigo Prof. Luís Fernando, de um debate promovido pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra sobre as alternativas ao neoliberalismo no Brasil. Quem eram os convidados? Tarso Genro e Manuela D’Ávila. Saímos do Rio Grande do Sul, mas ele não sai de nós! Tarso e Manuela apresentaram suas leituras do contexto político brasileiro aos sociólogos portugueses. O centro argumentativo de ambos foi o “golpe” que coloca Temer na presidência e a necessidade de “reinvenção” das esquerdas no país, por meio da criação de uma nova frente. O diagnóstico deles foi preciso, mas as possíveis saídas do esgotamento do lulismo como projeto de articulação entre Estado e sociedade, mediado pela conciliação de classes, não foram precisas. Em outras palavras: sabem da necessidade, mas não sabem com precisão o que fazer.

 

IV

Porto Alegre parece ter uma vocação nítida: é uma cidade grenalizada. Somos Grêmio, somos Internacional. Vivemos muito mais o “ou” do que o “e”. Sempre é isso ou aquilo, ainda que o isso não viva sem o aquilo. Achou confuso? Vou ser mais preciso: nosso pensamento maniqueísta e binário, no fundo, bem no fundo, é relacional, ou seja, só tem escravos se tiver senhores e vive e versa. Amamos e odiamos o Lula. Simples e complexo. A questão que parece evidente é: amando ou odiando, nossa política atual é refém de Lula. Palco mais apropriado para esse julgamento do recurso eu desconheço: Porto Alegre é berço do trabalhismo e do Fórum Social Mundial, ao mesmo tempo que capital do estado de grande parte dos generais que governaram o país na Ditadura (1964/1985) e atualmente governada por um prefeito que é mais do MBL do que do PSDB. Nessa cidade temos exposição em museu censurada e debate em rádio que não acontece, afinal, fica sempre a questão: “como conversar com um fascista?”.

 

V

Com o perdão do poeta: provas são precisas; convicções não são precisas. Mas, quem precisa da escritura do triplex para condenar Lula? Quem se importa com a precisão das provas se é Lula até debaixo d’água (que pode ser a do Guarujá)? A justiça, que deveria ser precisa, às vezes, nos confunde. Logo ela que necessita ser cega, acaba assumindo a pior cegueira: a de quem não quer ver ou só vê a roupa do rei nu. O que todo mundo está vendo é que estamos longe de um desfecho da situação atual. Grupos organizados vão permanecer nas ruas e, ainda que torcendo que não, podemos ter confrontos típicos de uma guerra civil. A Venezuela pode ser aqui. De fato, não estamos maduros o suficiente, pois nossa democracia parece mais o erro que confirma a regra do nosso autoritarismo estrutural. Se a eleição sem o Lula é uma fraude eu não sei, mas sei que existe quem anda dizendo que a eleição, por si só, é sempre uma fraude, principalmente em nosso contexto em que ainda se compram e vendem votos no mercado eleitoral. Teve eleição em Erechim ano passado, não é mesmo? Não sejamos mais um cego que não quer enxergar.

 

VI

Diante dessas imprecisões, a vida de cada dia segue. E os indicadores sociais também seguem mostrando de forma precisa que estamos ladeira abaixo. Em tempos de PEC que esvazia o Estado do necessário investimento em políticas públicas, de reformas que afetam a quem mais precisa e de um espetáculo midiático fora de série na defesa do indefensável (ao se considerar os interesses da maioria, claro), buscamos respostas. Política não deveria ser somente empatia, pois gostar ou não de fulano não deveria se sobrepor ao projeto que ele ou ela representam. Se eu não gosto do Lula ou da Dilma, mas quero estudar medicina, deveria apoiar novas universidades públicas, bolsas do ProUni ou o FIES. Afinal, quem pode pagar mais de R$ 5.000,00 de mensalidade para estudar medicina?

 

VII

Em Portugal a maior parte das matrículas na educação superior é pública, mas não gratuitas. Todo mundo paga mensalidade para estudar, mas quem não pode custear recebe uma bolsa do Estado. A ideia é que todos e todas precisam estudar. No Brasil, temos educação superior gratuita em um cenário em que ¾ das matrículas são em instituições privadas que, sabemos, não produzem significativamente pesquisa, conhecimento científico, tecnologia e inovação. Se tem uma coisa que é pública no Brasil que funciona são as universidades. Isso é dado. Isso é preciso. Condenar o Lula não é preciso, ainda que possa ser necessário mediante determinada interpretação. De que você que me lê precisa? O que acredita ser necessário? Viver, como sabemos, não é preciso. Se tudo der errado, vamos navegar?