Uma carona para o futuro

Era para ser apenas uma carona a Porto Alegre, onde iria encaminhar alguns contatos para divulgação de ‘A Tenda Branca’, acompanhar o lançamento do 8º livro do médico Nilson Luiz May (o contundente, perturbador e irretocável ‘Boque da solidão’), além de realizar serviços de assessoria para a Unimed RS.

Ao meu lado, na condução de seu possante Volvo, o amigo Alcides Mandelli Stumpf – presidente da Unimed Erechim e diretor do Instituto Unimed RS, que estava se deslocando à capital do Estado a fim de desempenhar suas atividades e agendas junto ao Instituto (entre as quais, almoço com o governador José Ivo Sartori, no Piratini).

Lá pelas tantas, creio que a partir de Passo Fundo – depois das tradicionais amenidades que davam conta dos afazeres cotidianos de ambos, Stumpf enveredou por um assunto que nos acompanhou até Porto Alegre (e além): o futuro.

Mas, não o futuro como eu, inadvertidamente, conhecia ou imaginava.

Foram cerca de 3h30min de uma ‘entrevista’ espontânea – tão profícua quanto longa, fruto da participação do médico, na semana anterior, no CMO Digital Day, evento promovido pelo Digitalks na sede do Mercado Livre, em Osasco (SP).

O CMO Digital Day, organizado por Martha Gabriel, que já esteve em Erechim numa palestra sobre Neurociência e atualmente é uma das personalidades mais requisitadas para falar de ‘inovação’ e ‘tendências’, discutiu estratégias do marketing digital, fomentando o ambiente de negócios e de conhecimento.

Somado à participação no curso – onde Alcides Mandelli Stumpf, aos 63 anos, se revelava o ancião da ‘tchurma’ constituída basicamente por jovens da geração ‘Y’ – o médico trouxe na bagagem (derramando pela estrada) elementos da recém-lançada obra ‘Homo deus: uma breve história do amanhã’, de Yuval Noah Harari, autor de Sapiens.

A seguir reproduzo alguns trechos do bate-papo, escorado pela memória e análises do jornal inglês The Guardian, na esperança de que estas linhas possam ser úteis na esquina do tempo que avança de forma assustadoramente veloz; mesmo para os alienados…

De cara, é importante frisar que quem não estiver atento às mudanças tecnológicas e a evolução digital estará, logo ali, fora do mercado. Sim, fora!

Para entender melhor este cenário, Homo deus traz em seu âmago uma ideia simples, mas arrepiante: a natureza humana será transformada no século XXI porque a inteligência está se desacoplando da consciência.

‘Não vamos construir tão cedo máquinas que, como nós, possuam sentimentos, o que se chama consciência’, reforça Stumpf, porém, o fato é que já construímos máquinas que conseguem identificar nossos sentimentos melhor do que nós mesmos: isso é inteligência.

Na raiz, os algoritmos

O Google — o mecanismo de busca, não a empresa — não possui crenças ou desejos próprios. Ele não se importa com o que buscamos e nem vai ficar ofendido com o nosso comportamento. Mas consegue processar esse comportamento para saber o que queremos antes que nós mesmos o saibamos. Isso tem o potencial de alterar o significado de ser humano.

Não apenas conquistamos a natureza, mas começamos também a derrotar os piores inimigos da humanidade, como a guerra, a fome e boa parte das doenças, diz Harari. Obtivemos tais triunfos ao construir redes cada vez mais complexas que consideram os seres humanos como unidades de informação.

A ciência evolucionária ensina que somos, em última análise, algoritmos – e ao manipular esses dados, podemos determinar nosso destino e daqueles que nos cercam.

The Guardian, numa crítica ao livro de Harari, enfatiza, todavia, que o problema é que outros algoritmos — aqueles que construímos — podem fazer isso de maneira muito mais eficiente que nós.

Alcides Stumpf – na direção do Volvo e correndo atrás do tempo e do saber – concorda com isso. E é exatamente tal elemento que o autor de Homo deus quer dizer ao falar no desacoplamento da inteligência e da consciência.

Somos o que dá às redes o poder

O projeto da modernidade foi erigido sobre a ideia de que os indivíduos são a fonte tanto do significado quanto do poder. Somos concebidos para fazer escolhas: como eleitores, como consumidores, como amantes. Isso, porém, não é mais verdade. Somos agora o que dá às redes o seu poder: elas usam nossas noções de significado para determinar o que vai acontecer conosco. Com nossos aplicativos, usos e costumes, servimos de fonte e ‘cobaia’ para alimentar esta grande rede virtual de informações.

Não estamos senão no início desse processo de transformação orientada por dados, e Harari diz que não há muito o que possamos fazer para frear o processo.

Para Stumpf, Homo deus é um livro do gênero “fim da história”, mas não no sentido bruto de acreditar que as coisas chegaram à sua conclusão. Antes o oposto: as coisas estão se movendo tão rápido que é impossível imaginar o que o futuro possa trazer.

Em 1800, era possível conjecturar sobre como seria o mundo de 1900 e qual seria nosso lugar nele. É isto o que é a história, uma sequência de eventos em que os seres humanos são os protagonistas. Mas o mundo de 2100 é agora, no presente, quase inimaginável. Não temos a mínima ideia de onde vamos nos encaixar, se é que vamos. Podemos ter construído um mundo que não tem lugar para nós.

A crença do comando

Considerando o quão alarmante é pensar assim, e uma vez que ainda não chegamos lá, por que não fazer algo para impedir que isso ocorra?  Harari supõe que a crença moderna de que os indivíduos comandam seu destino nunca foi muito mais do que uma crença. O poder real esteve com as redes. Indivíduos são criaturas relativamente impotentes, não sendo páreo para leões ou ursos. É o que os indivíduos podem fazer como grupos que lhes permitiu assumir o controle do planeta. Tais agrupamentos — corporações, religiões, Estados — compõem agora uma vasta rede de fluxos de informação interconectados. Encontrar pontos de resistência, onde unidades menores podem resistir às ondas de informações afogando o mundo, torna-se mais difícil a cada minuto.

Alguns têm desistido da luta. No lugar dos princípios fundadores da modernidade — o liberalismo, a democracia e a autonomia pessoal — há uma nova religião: o dataísmo.

Nossos gostos e nossas experiências irão se fundir. Nossas expectativas de vida também poderão aumentar consideravelmente: dataístas acreditam que a imortalidade é a próxima fronteira a ser cruzada. Mas a desvantagem é óbvia, também. Quem seremos “nós” depois de tudo? Nada mais do que uma acumulação de pontos de informação. As distopias políticas do século XX buscavam esmagar os indivíduos com o poder do Estado. Isso não será necessário no século em marcha. Como diz Harari: “No século XXI há mais probabilidade de que o indivíduo se desintegre suavemente por dentro do que brutalmente esmagado de fora”.

Serão exigidos níveis heroicos de educação e nenhuma dose de escrúpulos em fundir sua identidade pessoal com máquinas inteligentes. A partir de então, será possível se tornar um dos novos “deuses”. É uma perspectiva sombria: uma pequena casta sacerdotal de videntes com acesso à melhor fonte de conhecimento, e o resto da humanidade como simples ferramentas de seus vastos esquemas. O futuro poderia ser uma versão digital com carga plena do passado distante: o Antigo Egito multiplicado pelo poder do Facebook.

Harari é cuidadoso o suficiente para não afirmar que essas bizarras previsões irão de fato ocorrer. O futuro, afinal, é desconhecido. Ele reserva suas opiniões mais contundentes para o que tudo isso deve significar para o estado atual das relações entre os seres humanos, as máquinas e os animais. Se a inteligência e a consciência estão se separando, isso situa a maioria de nós na mesma posição que os outros animais: seres capazes de sofrer nas mãos dos possuidores de inteligência superior.

Humanismo sustentável

Neste esquema, encerra Alcides Mandelli Stumpf – que proporá a temática ‘Futuro’ para enredar o pano de fundo do próximo Fórum Instituto Unimed RS, em junho de 2018 – a polaridade entre os super homens do por vir e os desafortunados do futuro nos faz pensar em soluções – quiçá – viáveis, como a ‘cooperação flexível’. Tal conceito, diz o médico, talvez sirva como uma espécie de colchão do tempo, tornando menos traumática a transição para o futuro. ‘Pode até ser paliativa, mas dá um novo alento ao que chamo de humanismo sustentável – quem sabe o último reduto do humanismo orgânico. Até porque há vários indícios de que o futuro poderá ser inorgânico, embora nosso filho’, arremata para, em seguida, desligar o motor de seu carro inteligente. Chegamos.

Por Salus Loch 

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