QUEM É “NORMAL” EM ERECHIM?

A saúde da alma, bradou ele, é a ocupação mais digna do médico. Machado de Assis, O Alienista

Está sendo realizado neste final de maio gelado em Erechim o II Fórum de Saúde Mental e Economia Solidária[1]. O evento trata de um tema muito importante e sensível para uma cidade que assume com orgulho a designação de “capital da amizade”[2]. Amizade é um laço efetivo recíproco entre pessoas que devem, como diz aquela canção, serem guardadas no lado esquerdo do peito[3].

O tema da saúde mental é parte da agenda deste limiar do século XXI. Para o Ministério da Saúde, “a garantia do direito constitucional à saúde inclui o cuidado à saúde mental. É um dever do Estado brasileiro que tem a responsabilidade em oferecer condições dignas de cuidado em saúde para toda população. No Brasil, a política de saúde mental se pauta em princípios como a desinsititucionalização, o cuidado em liberdade e os direitos humanos”[4].

É na linha dos direitos humanos que a Secretaria Municipal da Saúde de Erechim busca tratar deste tema, tendo a saúde mental operada por valorosa equipe junto aos Ambulatórios de Saúde Mental e aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), tanto o que cuida de Álcool e Drogas (CAPS AD) como o que trata de forma mais ampla a questão (CAPS II) a partir da Reforma Psiquiátrica (1992).

Como política pública, a questão da saúde mental da população em vulnerabilidade social é o centro das atenções. E não é para menos. Historicamente a saúde mental é assunto “tabu”, resultado direto do pensamento estreito e binário que classifica as pessoas em “normais” e “doentes”. Na década de 1990, durante minha adolescência, era comum escutar “debiloide”, “retardado”, “abobado”, entre outros termos, direcionados a quem não era “normal”.  Isso atacava a todas as pessoas reconhecidas como tal, mas, sobretudo, aquelas mais pobres, que conjugavam o “problema de cabeça” com situações típicas da condição de pobreza.

Nesse sentido, há uma dupla exclusão, tanto pela condição de classe social como pela “excepcionalidade”. Logo, essas pessoas são estigmatizadas, rotuladas como “inúteis” e tratadas, muitas vezes, de forma animalizada. No Brasil, ser um “doente mental” com ou sem dinheiro faz diferença, assim como ter ou não uma origem familiar que crie uma rede de apoios. Como acontece na saúde em geral, quem não pode pagar plano de saúde ou particular, fica somente no Sistema Único de Saúde (SUS) que, longe de ser ruim, é insuficiente, às vezes, diante da alta demanda.

A questão da saúde mental articulada à economia solidária é um grande acerto, considerando que é parte importante do tratamento a “vida útil” da pessoa, ou seja, sua participação em atividades que explorem habilidades e que possam trazer algum retorno financeiro, que é elemento intrínseco de nossa sociabilidade contemporânea. Dessa forma, à economia solidária se articula a economia criativa, mote da atual gestão da Secretaria de Cultura de Erechim. Há um universo de potencialidades a ser explorado nessa comunhão de esforços.

Como foi trabalhado no II Fórum, a arte é uma expressão terapêutica e, como tal, humanizadora. Em especial, pela música é possível fomentar afetos e criar vínculos que ajudam na saúde da mente. Reconhecer as diferenças é parte de um projeto de sociedade inclusiva, solidária e diversa. Ao mesmo tempo em que, ao se transformar diferenças em desigualdades, reforçamos cenários opressores e de injustiça social. Cuidar e acolher são verbos típicos do cotidiano da equipe de saúde mental que, acertadamente, resolveu explorar diferentes expressões que mantém viva a humanidade dentro de cada paciente/cidadão.

Há um longo caminho ainda a ser trilhado para a necessária sensibilização das pessoas “normais” (de perto alguém é?) de que a sua vida é normal relativa a certo padrão, não em si. Isso significa dizer que o verdadeiro reconhecimento das diferenças é parte de um projeto social democrático, que afirma a justiça social antes da caridade. Retomamos o título: “quem é normal em Erechim?”. Com a resposta, tu que me lês.

Entre aspas

Pare e pense: quem é louco no mundo que vivemos? Qual é a representação do tipo normal que tens na tua cabeça?

O personagem de Machado de Assis, Dr. Simão Bacamarte, autor da frase que está em epígrafe neste texto, começou a prender todo mundo na “Casa Verde”, classificando as pessoas como loucas. Depois de quase internar toda a cidade, ele percebeu que, talvez, o louco fosse ele, já que o normal, o mais comum, não era o que ele pensava. Se ainda não leu, leia O Alienista.

 

Por: Thiago Ingrassia Pereira

Professor da UFFS Erechim

Coordenador do Projeto de Extensão “Dizer a sua palavra”: democratização da cultura popular e da comunicação

thiago.ingrassia@uffs.edu.br 

 

 

[1] Vide: https://www.pmerechim.rs.gov.br/noticia/20667/secretaria-de-saude-realiza-ii-forum-de-saude-mental-e-economia-solidaria

[2] “Rubens Safro – popular e localmente conhecido como Buja – […] chamou a cidade de Capital da Amizade. Logo a alcunha foi adotada pelo município, devido à diversidade das etnias que compunham a sua população e à harmonia de sua convivência”. Fonte: https://www.pmerechim.rs.gov.br/pagina/150/origem-do-nome

[3] Canção da América, famosa na voz de Milton Nascimento. Vide: https://www.letras.mus.br/milton-nascimento/27700/

[4] Vide: https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-de-a-a-z/s/saude-mental