Os sapiens que (acham que) sabem

I

É atribuída ao sociólogo francês Pierre Bourdieu a frase “le sociologie est un sport de combat” (a sociologia é um esporte de combate). Em momentos de forte agitação social, e em quadros de crise ética, emergem tentativas de explicação sobre o que, afinal, está acontecendo. Certamente, cabem aos(às) analistas sociais a construção de modelos explicativos que possibilitem a compreensão e intervenção no cenário social. Podem notar: ligamos a TV e vemos um sociólogo no programa, vamos escutar o rádio e tem uma filósofa no ar, abrimos um jornal como esse e, adivinhem!, lá estará alguém das ciências sociais ofertando um texto para dar conta do contexto.

II

Tem gente que acha chato e até desnecessário saber o que pensa esse pessoal das “humanas”. E, querem saber, quem acha isso não está de todo(a) errado! Imagina só o trabalho que dá pensar, conferir dados, buscar fontes diversas, prestar atenção nos posicionamentos, construir sínteses, escrever, ler, voltar a ler, ler mais um pouquinho, organizar as ideias… ufa!, sim, é melhor mesmo ficar nas frases prontas, aplaudir o “profeta” de plantão e, sobretudo, compartilhar as informações das redes sociais que têm ares de verdade. Pelo menos, da verdade que me serve. Jogar um esporte de combate cansa. Cansa mesmo.

III

Somos de uma mesma espécie: o homo sapiens sapiens. Sim, os que sabem que sabem. E levamos bem a sério isso: temos certezas, deixando sempre a dúvida para os(as) outros(as). A minha religião é a melhor, o meu grupo político é o certo, a minha opção sexual é a natural e o que eu compartilho no Facebook é confiável. Aprendemos com Sartre que “o inferno são os(as) outros(as)”. E todo mundo quer ir para o céu. Pelo menos o pessoal “de bem”, que pega a bandeira do país, canta o hino nacional e clama aos céus por “Intervenção militar já”. Já que a esquerda gosta de vermelho, nem vai se importar com o inferno que, no caso de “certa” esquerda, nem é mais os(as) outros(as), mas são os(as) companheiros(as) que não gritam sem parar “Lula Livre”.

Saímos das cavernas, mas as cavernas são saem de nós. Na primeira oportunidade, vamos acertar em cheio a cabeça de quem nos incomoda. Temos que estar preparados(as) ao combate. Tenho a sensação que ainda estamos com muita luta pela frente. Pode ser um conflito aberto, inclusive violento, pois vivemos em uma panela de pressão há tempos. O caldo está ficando grosso, ainda que, como sempre, alguns e algumas vão ter feijão para comer até não poder mais, enquanto outros(as) – sempre os(as) outros(as)! – aguardarão a raspa da panela.

Quantas vezes o bolo já cresceu e não foi repartido como diziam? Em 2013, não foi só pelos 20 centavos do exorbitante preço das passagens de ônibus, assim como hoje não é apenas pelo valor do combustível e do frete. Há outras questões fundamentais. O pior cego é o que não quer ver (um chavão volta e meia é bom também).

IV

Por falar nisso, me lembrei do Saramago e de seu “Ensaio sobre a cegueira”, livro que já virou até filme. Nem todo mundo que olha, vê. Para ver, é preciso saber. Para saber, é preciso conciliar duas dimensões básicas: a da prática, que construímos em nossas vivências e experiências de vida; e a da teoria, que vem das oportunidades de estudo que temos. Não deveriam ser dois mundos que não se comunicam. Mas, é o que acontece. Quem já não ouviu essas afirmações: “eu trabalho, não tenho tempo para estudar”, “minha escola é a da vida”, “não preciso estudar para saber as coisas”, e por aí vai. Tenho um profundo respeito pelo nosso povo pobre do campo e da cidade que não teve oportunidades de estudo e, quando teve, encontrou uma escola (e universidades) aviltada em sua estrutura material e, sobretudo, humana. Estou convencido (eu também tenho certezas!) de que educação não é sinônimo de escolarização e que todos e todas, por serem sapiens, produzem cultura.

Reconhecer as dificuldades de acesso e o duro debate sobre a “qualidade” de nosso ensino não me deixa sem condições de criticar o pensamento raso, preconceituoso e o crescimento espúrio da literatura de “autoajuda” e de uma nova ciência: a “achologia”.

V

Não ficaria surpreso se o pessoal que apoia a reforma do ensino médio, nos termos que se apresenta, quisesse implantar “achologia” no lugar das “chatas” sociologia e filosofia. Entraríamos definitivamente no império do “eu acho”. Radicalizaríamos a educação a distância (EAD) e metade do ensino médio seria pelo Facebook. E, claro, sem professores(as) doutrinadores(as). A redação do ENEM não mais nos inculcaria a “ideologia de gênero” e todo mundo ficaria livre para dar a sua opinião. Argumento fundamentado é coisa de “comunista” (antes fosse!). O Ministério da Educação iria implantar uma diretoria de “achologia” sob a coordenação do Alexandre Frota, que iria trabalhar de camiseta da Seleção. Claro, isso se o exército permitisse, pois não queremos ditadura, só uma intervenção para restaurar a ordem.

Ao pessoal que me lê – se é que tenho leitores(as): saibam que minha ironia barata desse texto é resultado de um estado de ânimo que varia entre graus de pessimismo e desencanto. Contudo, a história não é pré-determinada e podemos, com bom treinamento, enfrentar o combate de todos os dias.

Curiosidade

Segundo informação de uma matéria do excelente Nexo Jornal da UPF (www.nexojornal.com.br), a Seleção brasileira de futebol masculino já chamou 464 jogadores em 21 edições do campeonato mundial de futebol, de 1930 a 2018. Desde 1990, maior parte dos atletas atua em times no exterior. E não era para menos: a partir da década de 1990, o futebol assume uma faceta de mercadoria. Junto a isso, as mudanças na legislação e os efeitos da globalização neoliberal produzem o quadro atual. Isso explica que temos jogadores que nem chegam a jogar, ou jogam muito pouco, no profissional no Brasil e já vão para outros mercados mundo a fora. Roberto Firmino, hoje no Liverpool, é um dos grandes exemplos desse atual grupo de jogadores da Copa da Rússia. Aliás, o contexto político e econômico tem deixado a Copa do Mundo de futebol ainda em segundo plano, com “pouco combustível” nos noticiários.

Compartilhando leituras

Comecei a ler o livro “Sapiens: uma breve história da humanidade” do Professor Yuval Noah Harari, da Universidade Hebraica de Jerusalém, publicado no Brasil pela Editora L&PM de Porto Alegre. Trata-se de um texto elegante, cheio de informações sobre o humano que se (de)forma em cada um e cada uma de nós.

 

 

 

 

 

 

 

 

Por Thiago Ingrassia Pereira