O cinema é, para mim, uma possibilidade de nos educarmos para a sensibilidade, além de nos fazer refletir sobre temas difíceis, apresenta linguagem rica em simbologias e permite tocar no mais profundo de nós mesmos. O filme chega, por vezes, aonde os textos não chegam, nos capturam pelas imagens e nela estamos, nos identificamos e nos projetamos.
Foi em uma noite de abril que muito aprendi com o documentário Olhar de Nise (2015) dirigido pelo jornalista e cineasta Jorge Oliveira que também é o roteirista dessa bela obra cinematográfica. Um material sensivelmente produzido, certamente muitos colaboraram para que o produto final agradasse tanto aos olhos quanto aos sentidos, proporcionando luz sobre uma temática dolorosa e importante aos humanos que é a doença mental.
O documentário registra, com maestria, alguns depoimentos que compõem a trajetória de Nise da Silveira, uma das primeiras mulheres brasileiras a se formar em medicina. Revolucionou a psiquiatria brasileira usando tratamentos humanos para doenças mentais, ao invés dos procedimentos violentos que eram o padrão para a época.
Afastada do trabalho e presa por ser acusada de comunismo no Governo de Vargas, foi reintegrada as suas atividades e encarregada de aplicar sessões de eletroconvulsoterapia e insulínico em pacientes esquizofrênicos. Ela o fez, mas se recusa a continuar a compactuar com tal atitude que para ela era violência e não tratamento.
Nise é encaminhada para a Sessão de Terapia Ocupacional, que funcionava no Centro Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, e implanta o atelier de pintura, no qual o artista plástico Almir Mavignier era o monitor. Juntos entregam aos doentes mentais pincéis, tintas coloridas, papeis e telas e eles se encarregaram de criar imagens de seus inconscientes feridos e maltratados pelas longas internações. Isso foi maravilhoso, em um tempo que eletrochoque, lobotomia, banhos gelados, medicação em excesso eram considerados terapias em hospitais psiquiátricos no Brasil e no mundo.
Os desenhos começam a despertar os artistas de si, adormecidos no tempo, e eles surgem através de suas obras coloridas entre retas e curvas, para cima e para baixo, nos movimentos as tintas desenham o mundo como o interpretam.
Nise adorava gatos e muitos deles viviam em seu apartamento juntamente com o marido que a protegia de forma amorosa dos aborrecimentos da vida cotidiana, como consequência ficou à mercê de algumas dificuldades após a morte dele.
O documentário apresenta a última entrevista da psiquiatra alagoana já no final da vida, entre gatos e livros. Ela narra, em primeira pessoa, suas contribuições para a história da saúde mental no Brasil. Por vezes desmerecida e esquecida no meio acadêmico brasileiro como outras tantas figuras grandiosas de um país que desvaloriza seus grandes autores e seus feitos.
Ela é, para mim, uma das nossas grandes autoras, pequena de tamanho, mas grandiosa na ação, de gênio difícil, porém revolucionária e inconformada. Apaixonada pelo que fazia, após sua aposentadoria compulsória aos 70 anos, volta ao local de trabalho e se candidata como estagiária para continuar frequentando o atelier. Só a paixão explica tal fato.
Tenho para comigo que apenas seres apaixonadas se importam com a realidade, por vezes desumana, e nela operam mudanças, não sem pagar preços por isso, pois é preciso ir contra a ordem estabelecida. Era uma estudiosa e pesquisadora da mente humana, acompanhava pedaços de gente que as famílias abandonavam, a própria sorte, em depósitos conhecidos como hospital psiquiátrico e lá deixavam de existir; não eram mais reconhecidos como seres humanos, eram desprovidos de identidade.
Muitas dessas pessoas não tinham nenhum problema mental, alguns eram desajustados sociais que não correspondiam às regras impostas, outros viviam na rua. Enfim, toda a sorte de marginalizados eram trancafiados nos hospitais psiquiátricos.
Ao adentrar a porta essa se fechava, para jamais se abrir novamente em muitos casos, era a morte em vida. Alguns permaneceram a vida inteira trancafiados em hospitais psiquiátricos lucrativos. A saída de alguns se dava em um caixão quando lhe destinavam algum, senão vala comum e sem referência.
A arte deu vez e voz às pessoas que não eram reconhecidas como tais. As imagens de mandalas, de casas, de flores, de animais, tomavam forma e traziam um pouco de colorido ao mundo cinza em que viviam esses doentes mentais. O inconsciente desorganizado pelos surtos psicóticos, pela arte desejava a organização, a expressão, a existência perdida, a verdade interna.
Nise envia cartas com fotografias de mandalas realizadas por esquizofrênicos para Jung (teórico da psicologia), discípulo de Freud com quem divergiu. Ele se encanta com elas e escreve-lhe uma carta. Os dois se conhecem pessoalmente em um seminário que participa na Suíça e por lá permanece um período estudando, ele também a visita no Rio de Janeiro.
As imagens iam brotando através das mãos avidas dos pacientes, mas essas causaram polêmica. Para artistas plásticos eram obras de arte, mas para Nise eram material do inconsciente, uma forma para entender o progresso dos pacientes. Para a alagoana nunca foram obras de arte, mas sim produções do inconsciente que permitia acompanhar a evolução dos surtos psiquiátricos desses pacientes; os desenhos melhoravam à medida que os pacientes começavam a se organizar internamente revelando um autorretrato do que sentiam. Os desenhos permitiam entender do inconsciente e a própria pessoa que nele se projetava.
Nise nunca mudou sua forma de ver a questão, talvez fosse convicta do que pensava, pois para ela esse trabalho era sua causa de vida. Eram apenas obras do inconsciente ou também obras de arte? O que dizer da obra de Emydio de Barros que ilustra esta crônica? Não seria desqualificar a arte ver apenas como material do inconsciente?
Mas quem daria ao doente mental status de artista? Quem pagaria pela arte produzida por um doente mental? Quem lucraria com sua arte? Certamente, foram algumas perguntas que Nise se fez.
Dessa forma, com o acúmulo dos trabalhos produzidos e sempre catalogados, nasceu o Museu das Imagens do Inconsciente no Rio de Janeiro, o guardião do passado das muitas produções dos pacientes que por lá viveram e morreram e que nunca foram promovidos a artistas, mas muitos ocupavam tal condição, sem sombra de dúvida.
Criou grupo de estudo sobre as obras de Jung em sua casa, mas quem lá fosse estudar deveria suportar os gatos, mesmo que deles não gostasse. A condição para ingressar no grupo era o gato gostar da pessoa, ele era quem fazia a seleção de novos membros. Nise também tinha suas loucuras e não eram poucas.
No documentário, muitos quadros dos pacientes servem de pano de fundo aos entrevistados que vão dando o tom colorido do trabalho que Nise realizou. Alguns depoimentos são de pessoas que testemunharam a construção de uma proposta de humanização do tratamento ao doente mental com a arte, quando não se falava disso. São comoventes os depoimentos de pacientes que sobreviveram aos maus tratos estabelecidos e que até hoje se emocionam ao falar. Numa demonstração viva de resiliência, ou seja, os tratamentos desumanos os vergaram, mas não os quebraram, resistiram bravamente a toda uma engenharia pré-estabelecida da loucura.
A arte mostrou-se uma janela para a alma, claro que isso não se deu sem dores e uma dose absurda de altruísmo ao doente mental, sem elas nada de muito interessante é criado. Esse documentário torna Nise da Silveira memória viva e um símbolo de sua luta para diferenciar tratamento de violência em saúde mental.
Nise da Silveira fez a diferença, ousou criar porque era uma artista de si mesma.
Por Maria Emília Bottini
E-mail: emilia.bottini@gmail.com