I
Quando eu tinha 09 anos, no turno inverso da escola, era o responsável por colocar os lacres nas placas dos veículos, quando os proprietários destes procuravam a Delegacia de Trânsito com toda a documentação já em mãos. Na época, o lacre consistia em passar um pedaço de arame por um local específico da lataria, trança-lo, repetir o processo na área determinada da placa, passar um pedaço de chumbo pelo arame, novamente trança-lo, apertar o chumbo com uma espécie de alicate que deixava a marca do Estado no local, passar o arame por trás da placa, mais uma trançada, cortar o excesso e voilá, o veículo estava pronto para rodar legalmente pelo país. Passei alguns poucos anos fazendo isso e pelo serviço recebia gorjetas de alguns motoristas, meus primeiros trocados ganhos como resultado do meu esforço.
II
Foi dentro destes anos que um homem procurou a Delegacia de Trânsito e pediu aos policiais se podia me levar até sua casa, onde também funcionava sua empresa, pois precisava lacrar as placas de vários veículos. Era uma tarde de sol forte. Lá, me ofereceu refresco e contou um pouco da sua história enquanto eu trabalhava. Havia constituído família e conseguia finalmente expandir os negócios. Mas antes da expansão, logo após adquirir o terreno, antes mesmo de terminar a casa, plantou com orgulho nos fundos do mesmo, várias árvores, que naquela época já tinham lá seus 15 anos. Era possível ver a felicidade inspiradora em seus olhos e naquele dia, mesmo sem ter obrigação, pagou pelo meu trabalho com uma das maiores gorjetas que recebi enquanto “lacrador”.
O mundo afinal, não é um lugar muito grande e quis o destino que mais de 25 anos depois eu reencontrasse aquele homem, agora já apresentando as marcas da idade, mas mantendo a propriedade, a casa e principalmente, as árvores. Contei quem eu era, como anos antes cruzei a vida dele e por várias vezes batemos papo, mesmo que rapidamente.
III
Mais alguns anos passaram, sua esposa faleceu, uma cuidadora foi contratada para morar com ele. Porém a tristeza com a partida da esposa que esteve ao seu lado o atingiu como um furacão e assumiu o volante no processo de seu envelhecimento, mesmo com a visita dos filhos e o dia a dia com alguns cães, outros fieis companheiros. Andava curvado e a memória foi também abandonando-o aos poucos. Acabou em uma casa de repouso.
Em pouco tempo um pedaço da propriedade foi vendida para construção de um empreendimento e para tanto as árvores plantadas quase 50 anos antes foram derrubadas e cortadas em pedaços.
Certo dia, com a obra já em andamento, o homem quis deixar a casa de repouso para visitar a antiga propriedade e ao ver que as árvores, anteriormente plantadas com todo amor de quem está escrevendo a história de sua vida, não mais existiam, chorou copiosamente. Precisou ser levado embora, amparado.
IV
Aquela manhã foi a última vez que o vi, à distância. Ele já não lembrava quem eu era mesmo antes de precisar deixar a residência, o que não impedia de conversarmos.
Hoje a casa que ele construiu também veio abaixo, dará lugar a outro empreendimento. Não sei se aquele homem ainda está vivo, só sei que não viu mais essa parte de sua vida ser apagada em prol do progresso.
Espero que onde se encontre, esteja em paz e que se já deixou este plano, se encontre ao lado da esposa, em um lugar semelhante aquele que construiu aqui e um dia os deixou tão felizes.
Por Alan Dias