Nossa Senhora dos Navegantes e Iemanjá: entenda o que liga as duas divindades celebradas no 2 de fevereiro

Em Porto Alegre, o feriado é oficialmente dedicado às duas figuras desde o ano passado

Há pelo menos 150 anos, em todo dia 2 de fevereiro uma multidão toma as ruas de Porto Alegre. Com saída do Centro Histórico da Capital, a imagem de Nossa Senhora dos Navegantes percorre as avenidas Mauá e Castello Branco até chegar à sua igreja, às margens do Guaíba. 

Apesar de ser considerada uma tradição católica, a procissão de Navegantes acolhe devotos de diferentes religiões. Desde 2024, inclusive, uma lei em Porto Alegre consagra o feriado de 2 de fevereiro a Nossa Senhora dos Navegantes e também a Iemanjá.

Não é por acaso. Desde o Brasil Colônia as duas divindades foram ligadas pelo sincretismo, criando uma espécie de equivalência entre ambas. Inicialmente uma estratégia para sobrevivência dos cultos de matriz africana durante a escravização, a prática cultural de relacioná-las perdura ainda hoje no imaginário coletivo.

A história de como a santa e a orixá se “fundiram” no país remonta à época da escravidão, quando os colonizadores obrigaram os negros traficados a mudar de nomes, a serem batizados e proibiram cultos e qualquer expressão cultural que não fosse cristã.

O sincretismo, ou seja, a fusão de diferentes cultos, foi uma estratégia usada pelos povos africanos para continuarem cultuando sua religião de maneira “disfarçada”.

Porém, as duas divindades não possuem correspondências entre si, e não há como comparar ou igualar as duasCada uma remete a formas distintas de entender o mundo.

Bàbá Diba de Iyemonjá, que é Babalorixá da comunidade do terreiro Ilê Asé Iymonjá Omi Olodô de Porto Alegre, coordenador nacional da Rede Nacional de Religião Afro-Brasileira e Saúde e presidente do Conselho do Povo Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul, explica que o Batuque no Estado (uma das diversas tradições de matriz africana espalhadas pelo Brasil) cultua 12 orixás, que vieram do continente africano com os ancestrais escravizados.

Uma das diferenças mais evidentes entre as duas formas de ver o mundo é que os orixás estão relacionados a forças da natureza, ao contrário dos santos católicos. Nos países africanos, segundo Bàbá Diba, os orixás eram representados por pedras e não por imagens de gesso ou madeira.

Iemanjá, por exemplo, seria representada por uma ametista. Colocar a pedra correspondente ao orixá dentro das estátuas de santos católicos, que eram ocas, era também uma forma de estar nas igrejas e manter o culto de origem africana vivo. 

Dessa forma, Iemanjá foi sendo sincretizada com Nossa Senhora dos Navegantes pelo fato de as duas terem  ligação com os mares, oceanos e a proteção dos marinheiros.

— O sincretismo vai ser sempre importante. Ele vai estar eternamente na nossa vida por uma questão de convivência. Por mais que a gente tente separar as divindades africanas das divindades católicas — explica o babalorixá, que se esforça para que os filhos de santo do seu terreiro compreendam que hoje não é  mais necessário usar o sincretismo para assumir a identidade e a origem afrocentrada. 

 

As duas mães

Há muitas lendas sobre a história de cada um dos orixás. Não há, nos cultos africanos, à ode à pureza, à virgindade ou ao sofrimento. Os orixás são dotados de forte personalidade, além de serem donos de poderes sobrenaturais ligados a forças da natureza, como o mar, o fogo e as tempestades.

Histórias sobre paixões, guerras e separações, por exemplo, permeiam os itans (lendas da mitologia ioruba).

Esse modo de ser das divindades, especialmente as femininas, as aproxima dos humanos, gera identificação e promove o acolhimento. Elas casam e separam, têm filhos, fogem, usam espadas em campos de batalhas e vencem exércitos inteiros apenas com a inteligênciaSão belas e se enfeitam. São maternais e sensuais. Têm múltiplos traços de personalidade, o que lhes confere complexidade.

A união da fé na Capital

Em Porto Alegre, o 2 de Fevereiro é celebrado conjuntamente por católicos e praticantes de religiões de matriz africana há muito tempo. É um hábito adquirido, lembra Bàbá Diba.

— É um fenômeno muito interessante, por exemplo, que dentro da igreja aconteça a festa de Nossa Senhora dos Navegantes e fora, a celebração seja de Iemanjá. Se vê muito samba, muitos cânticos em homenagem a Iemanjá — diz o líder espiritual.

Para o pároco-reitor do santuário de Nossa Senhora dos Navegantes em Porto Alegre, padre Carlos José Feeburg, a vivência com as religiões de matriz africana é muito tranquila.

— Para nós é sempre importante nos preocuparmos mais com aquilo que nos une do que aquilo que nos divide, mantendo cada um com a sua celebração, com a sua fé, a vivência cotidiana de amar e fazer o bem — finaliza o religioso.

 

Por GZH