O sentido da vida é uma questão tão insondável, mas tão insondável, que não dá para exigir rapidez na produção de um filme sobre o mais metafísico dos temas.
O cineasta português Miguel Gonçalves Mendes só não contava que, meia década depois do início das filmagens, ainda não tivesse conseguido lançar “O Sentido da Vida”, documentário que é meio reflexão filosófica e meio cápsula dos tempos atuais. “É a minha enciclopédia do mundo”, define o diretor de “José e Pilar”.
Depois de acumular 2.000 horas de filmagens, sofrer imprevistos e se submeter a um experimento voyeur para acumular uma fração dos EUR 300 mil (ou R$ 1,3 milhão) que lhe faltam para a finalização, quer lançar a obra no ano que vem.
A empreitada cinematográfica se anunciava como uma epopeia de proporções lusíadas já desde a sua partida.
O plano envolveu percorrer cerca de 56 mil quilômetros, cruzando 13 países, e costurar histórias de pessoas que, na opinião do cineasta, são “arquétipos da humanidade”.
Entre os escolhidos estão o ator pornô gay Colby Keller, a ex-candidata a presidente Marina Silva, o ativista Julian Assange, o astronauta Andreas Mogensen, a cartunista Laerte e o escritor Valter Hugo Mãe.
O trajeto da jornada teria de seguir a rota de disseminação da chamada doença dos pezinhos, a PAF, uma enfermidade genética e fatal que teve origem num povoado português e se espalhou pelo mundo a bordo das naus lusitanas, na era dos descobrimentos.
Acompanhar o percurso da moléstia permitiria juntar a trajetória da civilização humana aos comentários de alguém com uma urgência de vida, acometido pelo mal hereditário –isto é, história coletiva e história individual.
“Eu tinha a sensação de que o mundo estava a entrar numa espiral de loucura e precisava cristalizar isso”, conta.
Cinco anos atrás, em maio de 2014, este repórter acompanhou parte das gravações, numa cobertura no bairro dos Jardins, em São Paulo. Enquadrados por uma vista do parque Ibirapuera, Laerte e Hugo Mãe se empanturravam de sushi e divagavam sobre os dissabores da existência.
Gonçalves Mendes só não havia ainda achado o seu protagonista, o portador da doença dos pezinhos que teria de viajar com a equipe de filmagem, “para ver o mundo em sua esquizofrenia”. Mas já tinha certo que ele teria de ser um brasileiro, “porque não pensa só no passado, como o português”, disse na ocasião.
À época, o Brasil ainda não havia mergulhado em ressentimento fratricida. O ex-governador pernambucano Eduardo Campos era vivo e despontava como estrela da campanha eleitoral que, meses depois, reelegeria Dilma Rousseff. E Bolsonaro era só o nome de um estridente deputado do baixo clero da Câmara.
Foi na cidade de Erechim, interior do Rio Grande do Sul, que a equipe de filmagem encontrou o seu herói, aquele que estaria disposto a largar tudo para viajar. Quando topou a aventura, o engenheiro cartógrafo Giovane Brisotto, então com 28 anos, dizia ter apenas dois desejos: que o Grêmio fosse campeão mundial e que achassem a cura para a sua doença hereditária.
A mãe do rapaz havia morrido em decorrência da PAF alguns anos antes. O prognóstico é que após 10 ou 15 anos dos primeiros sintomas, que em geral começam com uma perda de sensibilidade nos pés, a enfermidade se espalhe pelo corpo e leve à morte.
Em 2015, na fila para um transplante de fígado que poderia aliviar parte dos sintomas, o gaúcho partiu com o diretor e sua reduzida equipe de filmagem para São Paulo e depois para Portugal, onde começaram a travessia. De lá, foram de barco até a Índia, acompanhando o mesmo percurso da disseminação da doença, 500 anos antes, e cruzaram a fronteira até o Nepal.
No “teto do mundo”, à beira do Himalaia, Brisotto teve uma infecção que forçou a interrupção das filmagens.
Depois de um mês de internação, a equipe partiu para a China de avião, quebrando a regra que a viagem teria de ser feita apenas por via terrestre e marítima. Dali, seguiram para o Japão e depois para os Estados Unidos, chegando à fronteira com o México. Os planos incluíam descer todo o continente de carro e depois ir à Antártida, mais precisamente à Ilha da Decepção, onde terminaria a volta ao mundo.
Um SMS vindo do Brasil, contudo, interrompeu a viagem. O rapaz foi chamado às pressas para o seu aguardado transplante e precisou voltar. Recuperado da cirurgia, tornou a gravar outras cenas em Erechim e em Portugal.
Mas uma nova infecção o fez voltar ao hospital, de onde não saiu. Brisotto morreu por complicações médicas, no início de 2018. Ele tinha 31 anos.
“Aquilo me destruiu e fiquei sem ter como continuar a filmar”, rememora o diretor.
Os humores do mundo também haviam mudado. Enquanto cumpria a sua empreitada, veio o brexit, veio Trump, veio Bolsonaro. Vivendo em São Paulo, Gonçalves Mendes se mandou de volta para Lisboa. “O Brasil sempre foi muito injusto, mas de uma hora para a outra havia se instalado um discurso de ódio.”
Com as duas milhares de horas de filmagens, mas sem as três centenas de euros que lhe faltavam para finalizar a obra, o cineasta ficou angustiado.
No mês passado, ele enfurnou-se num quarto de hotel com paredes de vidro na cidade do Porto e montou uma espécie de reality show com duração de um fim de semana.
Ali, recebeu o amigo Valter Hugo Mãe e a escritora Pilar del Río, viúva de Saramago, a quem havia perfilado no documentário “José e Pilar”. Ao custo de um euro, responderia perguntas do público. “Essa minha experiência num aquário me rendeu 20 mil euros.”
Trinta e cinco minutos do material já estão editados e servirão para o filme, mais breve, e para uma série de cerca de oito horas de duração. O saldo finalizado de “O Sentido da Vida” mostra que o diretor imprimiu ritmo ágil ao amarrar histórias sobre a força do acaso e a do destino, sobre fronteiras nacionais e conexão mundial e sobre histórias individuais e coletivas.
Sem se escorar em “talking heads” –a enfadonha sucessão e depoimentos voltados para a câmera–, o diretor costura as impressões da viagem de Brisotto a um caleidoscópio de personagens de vários países que resumem a temperatura mundo na década de 2010.
Com ou sem dinheiro, ele espera lançar a obra em 2020. Ainda não se sabe se, ao cabo do périplo, conseguiu achar algum sentido da própria vida.
“Eu podia passar a minha vida a vender sabonetes, em vez de fazer o filme e levar as pessoas à loucura”, diz. “Mas também sei que se morresse hoje, teria vivido o quadruplo do que a maioria das pessoas.”
Já Brisotto conseguiu dar uma volta ao mundo antes de morrer. Mas não pôde ver o Grêmio ser campeão mundial.