As cenas de confronto observadas neste domingo, último dia do mês de maio de 2020, na Avenida Paulista em São Paulo são parte de um processo mais profundo de corrosão do nosso tecido social. Seria ilógico que o discurso de ódio, a polarização extrema e as claras manifestações de intolerância não provocassem uma confrontação aberta, na rua, no corpo a corpo.
A desigualdade social reproduzida ao longo dos anos, que tem sua origem no passado colonial e na nefasta escravidão, produziu uma sociedade cindida, dilacerada e hierárquica. A superação da repartição entre a Casa Grande, local dos(as) senhores(as), e a Senzala, local dos(as) escravos(as), é um histórico desafio brasileiro. Os reflexos desse tipo de sociedade se expressam na naturalização da desigualdade, no profundo racismo e na construção de um imaginário social complexo.
A violência aberta tem seus custos. Por isso, formas mais sofisticadas e sutis de violência foram sendo construídas e expressam situações muito desafiadoras à compreensão média. A chamada “violência simbólica” é uma prática mais difícil de ser visualizada, mas nem por isso menos danosa. Por exemplo: se o racismo virou crime previsto na legislação e algo politicamente incorreto, fruto de um longo processo (inacabado) de lutas por reconhecimento, basta deslocá-lo para outras situações moralmente mais aceitáveis, como preterir pessoas negras em certos empregos em nome de sua “qualificação”.
Para muitas pessoas, isso é o atual “mimimi”, ou seja, uma “vitimização”, um discurso de “esquerda” que torna as pessoas “coitadas”. Talvez nem os recentes e brutais assassinatos do menino João Pedro (Brasil) e de George Floyd (EUA) sirvam para sensibilizar suas “verdades”. Certos grupos sociais naturalizam discursos meritocráticos[1] que acreditam que “quem quer, consegue” na sociedade em que vivemos. Não percebem que as desigualdades vêm de berço, que as chances de ocuparmos determinadas posições sociais não são apenas resultado direto de esforço pessoal, competência e vontade. Somos resultados de variáveis socialmente construídas (classe social, relações sociais, gênero, raça/etnia).
Vivemos um cotidiano de violência simbólica crescente nos discursos que circulam na opinião pública brasileira. As redes sociais se transformaram em um espaço altamente conturbado, simbolizando novas formas de violência expressas em notícias falsas (fake news), memes e discussões recheadas de impropérios. Mesmo uma notícia de jornal ou um texto de opinião como este, uma vez postados na internet, são potenciais alvos de intolerância. O diferente é visto como inimigo que precisa ser derrotado. O espaço para o diálogo diminui ou desaparece. A frase pronta passa a valer mais do que a reflexão fundamentada, pois, nessa lógica, verdade e opinião se confundem.
Dessa forma, é evidente que a violência (simbólica ou aberta) não foi inventada pelo bolsonarismo, mas esse movimento potencializou o espaço da discórdia e da intolerância, atacando a nossa já frágil democracia. Desde antes da campanha presidencial de 2018, Jair Bolsonaro se notabilizou por suas fortes declarações que, além de expressarem suas posições políticas, o que é importante na democracia, potencializaram sentimentos preconceituosos. Além disso, o atual presidente simboliza um fazer político tradicional e que ganha novos contornos com as redes sociais: o discurso mentiroso[2].
Fazendo uma excelente leitura do quadro cultural e político brasileiro, tendo apoio decisivo de operadores de marketing nos EUA[3], Bolsonaro montou uma estratégia de ocupação midiática – principalmente via lives (ao vivo) nas redes sociais – que disse o que muitas pessoas queriam/precisavam ouvir. O curioso é que sua postura como candidato não muda significativamente quando assume a presidência, governando para os cerca de 30% da população que se constituí na sua base. Foi para esse segmento que trabalha o chamado “Gabinete do ódio” [4]. Ora, em um país que acolhe esse tipo de organização, não é de se esperar outra coisa que não a crescente violência – nas redes e na rua.
O ocupação do espaço público pelos(as) bolsonaristas é uma ação que certamente iria gerar um reação. Em meio à pandemia do novo coronavírus, assistimos reiteradas manifestações contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e em defesa de um cenário de ditadura militar, algo muito incompatível com o século XXI que se desenha. Isso só aumenta a tensão no país e, a exemplo de 2013, a reação começa não pelos partidos de oposição ao governo federal e nem pelas tradicionais centrais sindicais, mas por segmentos ligados às torcidas organizadas de clubes de futebol (alas antifascistas) e outros coletivos autônomos.
Estamos apenas no início. Entramos o mês de junho com a intensificação da pandemia e da reação pública ao ataque permanente à democracia patrocinado pelo bolsonarismo que, cada vez de forma mais clara, tem intenções autoritárias e não consegue apresentar soluções aos nossos graves problemas em todas as áreas. A “panela de pressão” chamada Brasil está fervendo em fogo alto.
Para quem pensa que esse cenário de violência aberta é um assunto apenas das grandes cidades, se engana. Aqui em nossa região e na cidade de Erechim já estamos convivendo há tempo com a violência nas redes e podemos ter a reação antifascista e pró-democracia em nossas ruas. Os movimentos de rua são sempre cheios de surpresas e incontroláveis em seu percurso. Passaremos a colher o que foi plantado em terra fértil com o apoio de muitas pessoas de nossa sociedade. Tomara que a “safra” não seja boa e, sobretudo, que sejamos capazes de aprender com a história.
[1] Para entender a meritocracia, sugiro o vídeo “O segredo da meritocracia”, do biólogo Atila Iamarino, disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YINTTVjBrY4>.
[2] Vejam esse interessante levantamento sobre as afirmações do atual presidente: <https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2018/10/28/tudo-sobre-bolsonaro/>.
[3] Vide o argumento desenvolvido pelo sociólogo Jessé Souza no livro “A guerra contra o Brasil” (2020).
[4] Saiba mais: <https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/ex-aliados-de-bolsonaro-detalham-modus-operandi-do-gabinete-do-odio/>.
Thiago Ingrassia Pereira
Sociólogo, Doutor e Pós-Doutor em Educação
Professor da UFFS Erechim