Desnaturalizando

I

O ser humano é um bicho complicado. Sabemos que a coisa mais natural do mundo é que vamos morrer e, curiosamente, vivemos como se isso não fosse acontecer. Quando acontecer com a gente, não saberemos como será nosso ritual de despedida, ainda que a gente já tenha participado dos rituais dos(as) outros(as). Inclusive, das despedidas de quem já tínhamos nos despedido em vida. Quanto valor passamos a dar ao que não podemos ter mais, exatamente na mesma proporção da escolha/circunstância que nos faz não ter enquanto podíamos. O pior luto é o da morte não natural, é do relacionamento conjugal de anos que termina, é do emprego que gostava e sou despedido é, enfim, daquilo que posso/poderia e não tenho.

II

Se a morte é natural, muitas coisas na vida não são naturais, por mais naturalizadas que sejam. Os regramentos sociais e os códigos de conduta em geral são socialmente produzidos, tanto que mudam ao longo do tempo. Contudo, parecem ser naturais, óbvios e esperados. De certa forma, moldam nossa vida e são responsáveis pela qualidade de nossas relações sociais. Somos ensinados(as) e ver o mundo com um certo tipo de olhos. Associamos-nos a pessoas e grupos que têm os mesmo olhos acerca do mundo e, na mesma medida, nos opomos às pessoas e aos grupos que têm outros olhos. Claro que as coisas não são tão simples assim. Vejamos o nosso quadro político e social nesse momento.

III

Não é natural, mas também não surpreende as situações que nos deparamos hoje. O espaço do diálogo anda reduzido. A polarização entre posições tem gerado um quadro extremista, terreno fértil para intolerâncias e opressões. Não são de agora práticas racistas, homofóbicas e preconceituosas. O que parece ser uma novidade é a exposição pública dessas posturas. As pessoas estão se autorizando a demarcar suas posições, implodindo o chamado “politicamente correto”, fazendo, muitas vezes, o elogio à ignorância. Ter posições políticas públicas é algo importante em um ambiente minimamente democrático. O que é curioso é a publicização de posicionamentos sem cuidado algum com as fontes, com o conhecimento prévio e a ciência de fatos. Claro que não precisa ser sociólogo como eu para poder falar sobre política. As pessoas têm o direito de interpretar o mundo a sua maneira. O problema que observo atualmente reside na incapacidade média de produzir um discurso organizado, cuidando a veracidade do que o posicionamento. O espaço virtual é desafiador nesse sentido.

IV

Uma situação emblemática aconteceu comigo em um Uber em São Luís, capital do Maranhão. Ao perceber que era professor e estava participando de um evento na Universidade, o motorista me disse que andava muito preocupado com “a doutrinação nas escolas”. Ao ouvir isso, perguntei a ele se estava se referindo a algum caso em especial. Ele me disse que não, e reforçou sua preocupação. Então, solicitei que me apresentasse um exemplo. Ele não conseguiu e só reproduzia a sua tese. O que vivi no Uber no nordeste é representativo de uma mentalidade média que não consegue se (auto)criticar e reproduz, de forma estanque e em formato de chavões/slogans, algumas posições presentes no debate público nacional. Não há doutrinação nas escolas, isso é parte de um ataque à liberdade de docência, confundindo a opinião pública. O problema central da escola brasileira é de financiamento, valorização dos(as) professionais e de formação inicial e continuada na área científica da educação. O resto é manobra diversionista.

V

Por isso, tanto na esfera pública como na privada, precisamos desnaturalizar tudo que confere juízo de valor e impacta nosso cotidiano. Não é natural homens terem mais apetite sexual que mulheres, não é natural o casamento e a monogamia, assim como não é natural mulheres ganharem menos do que os homens nas mesmas ocupações no mercado de trabalho. Não é natural acreditar em Deus. Da mesma forma, não acreditar. O que está em jogo é construirmos uma percepção que nos permita assumir as consequências de nossas opções. O tempo todo estamos classificando as pessoas e as instituições, assim como somos classificados(as) por todo mundo. Parar para pensar sobre essas coisas pode ser uma boa para que não naturalizemos o que não é natural. Nem ler essa coluna é natural. Aliás, o mais natural, o mais comum, é não ler nada e ter opinião sobre tudo.

Curiosidade

Ouvimos muito por aí a palavra “fascismo”.

O que significa mesmo?

Segundo matéria da Revista Superinteressante:

“A palavra “fascismo” vem do italiano fascio, que significa “feixe”. Na Roma Antiga, o fascio (também conhecido como fascio littorio), era um machado revestido por varas de madeira. Ele geralmente era carregado pelos lictores, guarda-costas dos magistrados que detinham o poder. O fascio podia ser usado para punição corporal, e também era um símbolo de autoridade e união: um único bastão é facilmente quebrável, enquanto um feixe é difícil de arrebentar.

No século 20, o político italiano Benito Mussolini se apossou desse símbolo para seu novo partido. Em 1914, ele fundou o grupo Fasci d’Azione Rivoluzionaria (mais tarde, em 1922, surgiria o conhecido Partido Nacional Fascista). O uso do fascio não foi à toa. A Itália enfrentava uma profunda crise desde sua unificação tardia (concluída em 1870), e as consequências da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) pioraram a situação. Mussolini prometia, com o fascismo, trazer de volta os tempos áureos do antigo Império Romano.

Hoje, a palavra virou sinônimo de “extrema direita”, mas é usada até para se referir a “totalitarismo” e “autoritarismo”.

Compartilhando leituras

Para saber um pouco mais sobre a política brasileira na atualidade, sugiro a leitura do livro do Cientista Político da UNICAMP, Armando Boito Júnior, que recentemente esteve na UFFS campus Erechim em atividade do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas.

Intitulado “Reforma e crise política no Brasil: os conflitos de classe nos governos do PT”, é um livro de análise de conjuntura.

 

Por Thiago Ingrassia Pereira