Cinco anos após o início da pandemia de covid-19, o mundo ainda enfrenta os impactos deixados pela crise sanitária. Na educação, os desafios evidenciados ao longo desse período impulsionaram debates sobre as possibilidades e limitações do ensino remoto, o acesso às tecnologias da informação e comunicação em contextos de grande desigualdade, além de questões estruturais relacionadas às condições de ensino e de trabalho dos profissionais da área. Se em todas as modalidades e níveis de ensino a pandemia acentuou essas dificuldades, como foram os impactos na educação especial?
A professora e pesquisadora Sonize Lepke, docente da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) Campus Erechim, analisa como alunos, pais, professores e escolas enfrentaram os desafios impostos pela pandemia para atender às necessidades educacionais das pessoas com deficiência. Confira a entrevista a seguir.
Como a pandemia impactou a educação especial inclusiva? Quais foram os maiores desafios enfrentados pelos professores e pelos estudantes, principalmente no início?
Quando foram suspensas as aulas em virtude da covid-19, imaginamos que seria um curto espaço de tempo. Nós, enquanto docentes de uma universidade, já sofremos o impacto. Imagina a educação básica. A pandemia exigiu, por parte das escolas e dos gestores, das redes e dos professores, uma reorganização para atender as crianças na educação infantil, assim como os jovens e adolescentes no ensino fundamental e no ensino médio.
Essa reorganização exigiu a ausência do contato físico. Tinha que ser por material enviado aos alunos, ou, ainda, em vídeo, com aulas pela internet. E aí começamos a perceber os grandes problemas estruturais, que muitas vezes nem se discute mais. Falo da desigualdade social, que nós também percebemos na universidade, e talvez hoje a gente não olhe mais para isso com tanto impacto. Por exemplo: eu, em minhas aulas, não podia exigir que os alunos abrissem suas câmeras justamente porque muitos não tinham uma boa conexão de internet. Muitas crianças, jovens e adolescentes não tinham acesso à internet. Não tinham sequer um celular ou um computador para que a escola pudesse fazer esse contato. O IBGE mostra que 79.1% da população brasileira tem acesso à internet. Ou seja, 20% da população não tem. E, dentro desse 79%, a gente não sabe como é esse acesso.
Além dessa questão, há o analfabetismo dos pais. O Brasil tem um número significativo de adultos ainda analfabetos, ou analfabetos funcionais. Como esses pais ajudariam as crianças? Foram grandes problemas que impediram o acesso dessas crianças e adolescentes ao conhecimento.
E no caso da educação especial inclusiva, mais especificamente, como era o cenário?
Quando eu olho para a educação especial inclusiva, eu tenho que fazer um outro recorte, que é a interseccionalidade. O que é isso? Quando eu olho para a criança com deficiência ou com transtorno, eu tenho que olhar para as condições que estão em volta dela: a questão do gênero, a condição socioeconômica, a escolaridade dos pais. Todas essas questões perpassam a educação especial. Na pandemia, a família ou uma pessoa designada ficava com as crianças em idade escolar, fato que causou mudanças significativas na dinâmica e organização de milhares de lares. E em cada um destes contextos, em cada núcleo familiar, a interseccionalidade deve ser observada.
Para alguns, dadas as condições materiais e financeiras favoráveis, esse foi um período de reorganizar os momentos de estudo. Conheço famílias que encararam o desafio e adaptavam todos os materiais. Buscavam auxílio dos professores e reproduziam as orientações de modo individualizado. Situações essas que família e professores trabalharam juntos, para que a rotina das crianças fosse de harmonia, aprendizagem e afeto.
Porém, na sua grande maioria, foi um verdadeiro desastre. Algumas famílias não tinham espaço físico para a criança realizar as atividades, não tinham internet, não tinham um familiar que pudesse auxiliar, não possuíam a prática de estudos e, por vezes, não tinham quem soubesse realizar as atividades solicitadas pela escola. Terapias com fonoaudiólogo, fisioterapeuta e psicólogo foram interrompidas e, dependendo da situação da criança, houve uma ruptura das atividades que vinham desenvolvendo e nos avanços conquistados.
O que a escola e os professores fizeram? Quando percebiam essas situações de fragilidade e dificuldade, enviavam material numa semana para retornar na outra. Isso para que a escola tivesse um certo controle de que algo estava sendo realizado – de certo modo, tensionando a família a realizar as atividades e fazer-se parte do processo de aprendizagem.
Por mais que a gente note esse movimento, essa preocupação das escolas, não só das crianças com deficiência, mas em todo o processo educacional, principalmente da educação infantil e das séries iniciais, não foi o suficiente. Temos pesquisas realizadas pós-pandemia com indicadores que apontam o retrocesso quanto à universalização da educação no ensino fundamental. Os conhecimentos não são adequados para a série, além do aumento da evasão.
Os estudantes da educação especial estão incluídos nestes dados. Novamente, olhando para a interseccionalidade, posso dizer que, hoje, provavelmente, esses estudantes são aqueles que estão à margem, correndo o risco de evadir e de não avançar no desenvolvimento do conhecimento escolar.
Nesses ambientes em que as crianças com deficiência e com transtornos estudam, está claro, hoje, que o ensino remoto se mostrou ineficaz?
Não vejo o ensino remoto como algo positivo em sua totalidade, a não ser em uma ou outra situação em que essa criança, no contraturno, faça alguma terapia, ou que tenha, às vezes, uma e outra atividade remota, ou aulas de reforço. A educação especial exige as atividades presenciais, talvez mais do que nos outros níveis e modalidades da educação. Ela exige o olhar do professor em relação a esse aluno. São pouquíssimas as atividades que possam ser pensadas de modo remoto, ou que ainda estejam acontecendo desse modo.
Enquanto professora de cursos de licenciatura, a senhora percebe que a pandemia mudou alguma coisa no processo formativo dos novos profissionais?
Inicialmente percebemos que muitos estudantes do ensino superior desistiram. Em 2024 alguns retornaram. Percebo que parte dos nossos estudantes deseja ter mais aulas on-line, mas não a sua totalidade. Isso de certo modo obrigou o ensino superior a reavaliar os Projetos Pedagógicos de Cursos (PPCs) e a questionar as atividades desenvolvidas até a pandemia. São mudanças impulsionadas pelo próprio MEC, através das políticas de formação de professores. Na UFFS iniciamos, em 2024, uma Segunda Licenciatura em Educação Especial Inclusiva, com 31% da carga horária total mediada por tecnologias digitais.
Estamos com cursos de extensão para a formação de professores para educação especial propostos para 2025 com 50% a 90% de EAD. Ou seja, temos possibilidades. Não sabemos exatamente o impacto disso. Precisamos também estar atentos para não excluir aqueles que não têm acesso à tecnologia ou necessitam acessibilidade linguística.
Antes da pandemia avaliávamos, enquanto professores, que em algum momento teríamos mais atividades mediadas por tecnologia ou EAD. A pandemia apressou este processo. Fomos obrigados a encontrar alternativas. Alternativas que, aprimoradas, podem ser viáveis e assegurar o acesso ao ensino superior, bem como à formação continuada.
Falando em um cenário mais amplo, houve alguma mudança em termos de políticas públicas para a educação especial?
Estão sendo implementadas agora. E o meu medo é que não dê tempo de serem consolidadas, de serem entendidas como essenciais pelos gestores das escolas e pelos professores. No ano de 2024 e neste ano, formações estão sendo disponibilizadas através das universidades públicas para os professores e gestores na área da educação especial inclusiva. Temos também mudanças na formação de professores na modalidade EAD.
Algo semelhante aconteceu a partir de 2008 com a Política Nacional da Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI). Evidenciei na minha pesquisa de doutorado que alguns gestores escolares, apesar de ter gestado os recursos financeiros, visualizado a implementação das Salas de Recursos Multifuncionais e ter realizado adequações na estrutura física da escola com recursos do governo federal, não entendiam a mesma como uma política pública que buscava assegurar o direito à educação de todos os estudantes.
Por isso, friso: este é um momento histórico. Temos investimentos gigantescos para a formação de professores. Vou citar o nosso exemplo aqui na UFFS: sonhávamos em trazer um curso de licenciatura em Educação Especial Inclusiva. Parecia impossível. E aqui estamos, com um curso de segunda licenciatura e dois cursos de extensão voltados para os professores que atuam com estudantes com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento, altas habilidades ou superdotação nas classes comuns ou nas Salas de Recursos Multifuncionais.
O que ainda precisa ser melhorado nas práticas pedagógicas para garantir a inclusão efetiva dos alunos com deficiência?
Penso que a compreensão do que é o direito e a concepção de deficiência antecedem as práticas pedagógicas que visam os processos inclusivos. A educação é um direito. Está na Constituição. O que pensamos sobre a deficiência, transtornos, altas habilidades ou superdotação é uma concepção constituída no contexto social-histórico em que estamos inseridos. A partir da defesa do direito e da concepção de que a deficiência é uma característica do ser humano, eu, como professora, posso estar apta a elaborar práticas pedagógicas que dialoguem com a necessidade do estudante. Porém, quando me afasto destas premissas, também me afasto dos processos inclusivos e das práticas pedagógicas que visam garantir a inclusão. E isso não está dado, a minha concepção em relação à deficiência e compreensão quanto ao direito pode modificar a partir do conhecimento, da experiência, da formação, do conhecimento quanto ao contexto da escola em que atuo como professor. E isso é fantástico! Posso, como professor, fazer diferente. Posso modificar a prática pedagógica.
E essa é a proposta que trabalhamos nos cursos de formação de professores aqui na UFFS, nas disciplinas de Libras e Educação Especial, bem como na Segunda Licenciatura, com o objetivo de que os professores em formação busquem se constituir como profissionais que farão o seu melhor para assegurar a inclusão dos estudantes da educação especial.
Entendo que a escola é um espaço e um tempo que não garante que todos alcancem o mesmo conhecimento, mas ela cria as possibilidades para que cada um consiga alcançar os seus resultados. E essa talvez seja a grande lição ou compreensão necessária quanto à pandemia. A escola é espaço e tempo essencial para todas as crianças e jovens, independente da sua condição. Cabe a nós, professores, fazer com que ela também seja o tempo bem vivido por todos que por ela passam.
A professora Sonize Lepke é mestra em Educação nas Ciências e doutora em Educação. Na UFFS, coordena o curso de Segunda Licenciatura em Educação Especial Inclusiva e é professora permanente do Programa de Pós-graduação Profissional em Educação (PPGPE).
Por: Wagner Lenhardt Jornalista
Assessoria de Comunicação (Ascom) UFFS