Quem comprou carro zero quilômetro um ano atrás está hoje pedindo até 28% a mais do que o valor pago na aquisição para vender o veículo, agora considerado um seminovo. A distorção que permite lucro na venda de carros mesmo após um ano de uso, quando em condições normais o veículo teria sofrido depreciação de 15% a 20%, se deve à falta de modelos no mercado.
Depois de mais de um ano de produção limitada por falta de peças, período no qual as montadoras direcionaram os componentes disponíveis à fabricação de carros mais caros, alguns modelos, especialmente nos segmentos de entrada, tornaram-se raridade. Como os preços dos carros novos, referência do mercado, também não pararam de subir em meio ao contexto de oferta restrita, donos de automóveis usados perceberam uma valorização incomum de seus veículos.
Segundo levantamento feito com base nos anúncios publicados por revendas e donos de carros usados no site da Mobiauto, o preço dos 40 automóveis de passeio e comerciais leves mais vendidos no Brasil subiu, na média, 7,1% depois de um ano de uso. A pesquisa faz uma comparação dos preços cobrados no primeiro semestre deste ano contra o valor médio dos mesmos modelos na condição de zero quilômetro nos seis primeiros meses de 2021.
A maior valorização verificada aconteceu no Mobi, da Fiat, cujo preço, na versão Easy com motor 1.0, saltou de R$ 41 mil para R$ 52,5 mil – ou seja, o carro ficou 28% mais caro após um ano de uso. Chama a atenção também o preço do Onix, modelo que deixou de ser produzido pela General Motors (GM) por cinco meses no ano passado. Na versão LT, também equipada com motor 1.0, a valorização foi de 14,5%: de R$ 65,6 mil para R$ 75,1 mil.
“É espantoso comprar um carro zero quilômetro, usá-lo por um ano e ver seu patrimônio aumentar em quase 30%”, diz Sant Clair Castro Jr., consultor automotivo e CEO da Mobiauto.
Daqui para frente, porém, a tendência apontada por analistas de mercado é de estabilização, dados os efeitos aguardados sobre o consumo não somente do aumento dos preços, mas também das condições mais apertadas de crédito.
O mercado de usados, depois do recorde no ano passado, mostrou no primeiro semestre recuo de 20% nas transações de compra e venda envolvendo automóveis de passeio e utilitários leves, como picapes e vans. Já nas vendas de novos, a queda desde o primeiro dia de 2022 está em 15%. Com a acomodação no ritmo de vendas no mês passado, os estoques, de 145,5 mil veículos zero quilômetro, estão no maior volume dos últimos dois anos, apesar de todas as dificuldades de produção nas montadoras.
A situação já se reflete em menor impulso da inflação dos carros usados, onde a alta dos preços, que em doze meses chegou a bater nos 17% em fevereiro, caiu em junho para abaixo de 15% (14,9%). Na passagem de março para abril, os preços dos usados chegaram a mostrar deflação de 0,5%.
No caso dos carros zero quilômetro, no entanto, a inflação tem se mostrado mais persistente, marcando 18% nos doze meses até junho, conforme mostram as variações do produto dentro da cesta do IPCA, o índice oficial de preços medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Tivemos aumentos de preços gigantescos que já são suficientes para esfriar a demanda”, comenta Cassio Pagliarini, consultor da Bright Consulting. “Hoje, eu acredito muito mais na falta de clientes do que na falta de carros no mercado. Faltam componentes para produzir certos modelos, porém o mais determinante atualmente são as taxas de juros e os preços altos”, acrescenta o especialista.
Além da escalada dos juros praticados nos financiamentos de veículos, já acima de 26% ao ano, a taxa mais alta dos últimos seis anos, crescem na indústria de automóveis os relatos de condições mais duras nas concessões de crédito. Bancos que antes financiavam 70% do valor do carro estão topando hoje financiar apenas metade (50%) ou no máximo 65%. Os prazos médios do financiamento, conforme contam revendedores de carros usados, vêm sendo encurtados de 48 para 36 meses.
“Os bancos começaram a fazer exigências maiores porque temem um aumento da inadimplência. O crédito não mostra a mesma fluidez”, comenta Enilson Sales, presidente da Fenauto, a entidade que representa as revendas de carros seminovos e usados.
“Não se via carro sobrando como se vê hoje. A renda do consumidor não acompanhou os aumentos de preços”, afirma Sant Clair, da CEO da Mobiauto.