Carta ao Tempo

Participei de uma oficina chamada Processo Criativo.  Inscrevi-me, curiosa para saber o que aconteceria. Ao adentrar no local, observei que várias mesas estavam dispostas em uma sala ampla e em cada uma delas havia vários objetos. Fomos orientados a partir daquele momento a não falar, a silenciar, apenas sentir e, quando houvesse dúvidas, deveriam ser anotadas no quadro que seriam respondidas pela coordenadora.

Fomos estimulados a contemplar os objetos, escolher uma das mesas e criar, fazer arte, mudar as posições e se conectar com aqueles objetos e seus sentidos.

Rapidamente o grupo se movimenta por entre as várias mesas, num caminhar de procura, de busca.

Percorri as diversas mesas com olhar atento aos objetos que sobre elas estavam, cada um a transmitir vida e morte, conforto e desconforto, prazer e dor; enfim, o mundo contado pelos objetos velhos, quebrados, descartados que o homem cria para preencher seus espaços vazios, talvez para não se sentir tão só.

O meu olhar foi fisgado por uma das mesas, pois nela havia uma pergunta que me provocou –“Como seria sua carta para o tempo? ”. De imediato achei que deveria permanecer naquela mesa e responder a provocação feita. Sobre a mesa havia outros objetos compondo o cenário. Escolho ficar para refletir, sentir e pensar. Há sobre a mesa um relógio parado, pequenos espelhos, pedaços de papéis pretos, pétalas de flores secas ainda sinalizando sua cor original que aos poucos se despediam. Alguns lápis e canetas coloridas, um livro aberto, um relógio de pulso velho, folhas de papel e um envelope amarelado pelo tempo.

Passo a me relacionar com os objetos e a mudar suas posições, compondo novos cenários e a construir novas possibilidades de interação, de criação e, a cada movimento, novas formas são permitidas, nada é estático, tudo é dinâmico e plural. Fico satisfeita com a produção e com a diversidade que se instala. Brinco com as diversas formas de criação possíveis e me divirto.

A pergunta permanecia a me provocar e me senti compelida a escrever. Apanhei as folhas amareladas e me lancei. Foi assim que escrevi para o tempo minhas divagações e as palavras foram surgindo e compondo um pequeno texto que segue.

Tempo, Tempo…

Minha vida foram e são as minhas escolhas, certas ou erradas, e eu me responsabilizo por elas. Não quero culpar ninguém pelo que não fiz e não escolhi. Gostaria que um dia, quando a morte me encontrar, eu ainda estivesse satisfeita com aquilo que fiz e produzi ao longo do meu caminhar como mulher, amante, amiga, profissional, irmã, tia…. Amei e fui amada. Tive bons amigos e outros nem tanto. Trabalhei e ajudei muitos a encontrar seus percursos, por vezes com mais leveza. Sofri as dores de amores não correspondidos, mas sobrevivi. Briguei por quem não podia brigar. Provoquei e fui provocada. Acreditei demais nas pessoas e me decepcionei. Não me arrisquei mais e nem tentei novas experiências por puro medo do desconhecido. Senti-me triste e a tristeza quase me levou embora. Tenho uma família que fez o que pode com as condições que tinha, me tornando quem sou. Acredito na humanidade, mas por vezes desacredito. Casei, não tive filhos, mas não me arrependo, pois eles dão muito trabalho. Estudei, li, escrevi. Dei aulas para alunos que ficaram comigo e outros nem os conheci. Adoeci, senti dores que quase me tiraram a saúde mental. Enfim, vivi. Ao findar essa reflexão pergunto quanto tempo ainda tenho para desfrutar do tempo? Sei que não terei respostas, mas gostaria, quem sabe assim a ansiedade de fazer coisas daria lugar a contemplar mais o tempo que passa por mim sem volta, a não me permitir levar nada do que fiz a não ser a mim mesma. Sei que a morte virá e levará meu tempo embora. O tempo de viver chegará ao fim, mas me conceda apenas aproveitar o tempo que o tempo tem e ao partir, que minha vida tenha sido rica de experiência e de crescimento. Será pedir demais?

E assim escrevi minha carta ao tempo. Após minha leitura dobrei e coloquei no envelope amarelado. Solicitei autorização para levar comigo minhas reflexões de uma tarde entre objetos, arte, escrita, reflexão em que o tempo passou. Dividimos as experiências de sermos provocados, mas resolvi guardar comigo o tempo que me fez pensar. De vez em quando me lembro daquele dia em que resolvi conversar com o meu tempo que passa por mim, por vezes sem que me dê conta, a me roubar os dias.

Por Maria Emília Bottini

Psicóloga clínica

Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF)

Doutora em Educação pela Universidade de Brasília (UnB)

Autora do livro No cinema e na vida: a difícil arte de aprender a morrer

E-mail: emilia.bottini@gmail.com