I
A primeira vez que ouvi o termo caravana foi no programa do Sílvio Santos. O apresentador saudava as diversas caravanas que vinham aos estúdios do SBT e integravam seus programas que se sucediam por todo o domingo. A ideia aqui é de um conjunto de pessoas que percorre alguma distância e que tem um objetivo. No caso, assistir o “Qual é a música?” ou o “Show de calouros”. Nessa linha, um grupo de peregrinos pode formar uma caravana de cunho religioso, assim como viajantes em geral podem se associar para explorar novos lugares. A Caravana do ex-presidente Lula passou pelo sul do Brasil em março. Roteiros em cidades gaúchas, catarinenses e paranaenses mobilizaram pessoas e objetivos. Entre apoios e oposições, algumas questões chamaram a atenção e expuseram nossas encruzilhadas políticas atuais.
II
Em primeiro lugar: não há figura política mais popular do que Lula no Brasil. Isso é um fato inquestionável, ao ponto de explicar os amores e ódios que fomenta nas pessoas. Aplausos e vaias. Gratidão e raiva. Até seu adversário (e de todo o mundo civilizado) Bolsonaro prometeu ir a Curitiba “prestigiar” a caravana lulista no dia que estará na cidade de Moro (mas também de lindos parques e monumentos, do Atletiba e até do Paraná Clube que ainda joga num estádio da Copa do Mundo de 1950). As pessoas saíram de casa, anônimas e em grupos, para saudar ou demonizar o ex-presidente. Com chuva, debaixo de sol, à noite, qualquer hora foi hora para demonstrar que as pesquisas eleitorais que colocam Lula em 1º lugar estão certas. Esse é Lula, o político teimoso, que perdeu três e ganhou duas (quatro, se pensarmos na Dilma e suas circunstâncias) eleições presidenciais, que se reinventou, que apostou na conciliação de classes, na “governabilidade” e que teve como meta que as pessoas, todas elas, pudessem fazer três refeições diárias no Brasil.
III
Por que as pessoas gostam do Lula? Lula tem uma base social impressionante, conquistada desde seu envolvimento com o sindicalismo no ABC paulista e a fundação do PT. Tem apoio do maior movimento social da América Latina (MST) e de uma grande central sindical (CUT). Em seus dois governos, construiu políticas sociais marcantes que contribuíram para a diminuição das escandalosas desigualdades sociais brasileiras. Luz, casa, renda mínima e universidade: essas e outras ações do governo federal melhoraram a vida das pessoas, contribuíram para diminuir a nossa chaga social da miséria. As pessoas não votam no programa do PT, mas votam no Lula. Ele é maior que o seu partido. Se ele não fosse mais do PT, aposto que não faria muita diferença. A diferença está que a memória do governo Lula é viva no coração, mentes e bolsos das pessoas.
IV
Por que as pessoas não gostam do Lula? Penso que há um componente de classe social que não pode ser desconsiderado. É o discutido “ódio de classe” ou “ódio ao pobre” que nossa cultura política gerou ao longo do tempo. Para além disso, há o debate, fortemente impulsionado pela grande mídia, do tema da corrupção. Lula é corrupto e deve ser preso. Portanto, não é confiável, não serve, precisa ser derrotado. Com a mesma rapidez da fama de um participante de Big Brother, vimos juízes ganharem notabilidade e serem chamados de heróis. Claro, alguns dos heróis de toga já foram para o paredão. Há uma reorganização de segmentos da direita no país, o que é do jogo democrático. Não é fácil perder quatro eleições seguidas. O componente novo é o ódio e sua disseminação, tanto nas redes sociais como, quando da passagem da Caravana de Lula pelo sul, presencialmente. E isso, sabemos, é crime. Chamar de “vagabundos” os manifestantes de esquerda e ir para as rodovias manifestar é, digamos, um paradoxo interessante.
V
Gostar ou não do Lula é o que menos me importa atualmente, até porque há outras opções à direita e à esquerda do espectro político-partidário. Estou mais preocupado com a democracia e a civilidade em nosso país e, sobretudo, com um projeto de país inclusivo. Estamos vendo um conflito que vai crescendo assustadoramente. A execução da combativa vereadora do PSOL carioca é um dos exemplos mais contundentes. O debate público de ideias é muito importante para a democracia. Porém, para um bom debate é preciso de boas armas: informação, conhecimento, estudo. Não relhos, pedras e espingardas. Vivemos a era do “elogio da ignorância” onde menos vale mais. Onde vamos parar? Incrivelmente, até uma senadora da república, Ana Amélia Lemos (PP-RS), entrou no discurso do ódio. Claro, ela quer agradar sua base do agronegócio que parece do tempo da República Velha (1889-1930), pois os empresários modernos sabem que um projeto compartilhado com o Estado tem seus ganhos. Com ou sem Lula, não vejo um final feliz de nossa caravana chamada Brasil. As posições extremadas sugerem a superação da conciliação de classes, mas, em que bases? Qual o projeto da esquerda além de Lula? Qual o projeto da direita além do ódio? De que adianta eleger Lula e um congresso de políticos(as) viciados(as) e carreiristas? De que adianta eleger Bolsonaro e assistir ao circo pegar fogo de vez? O pior é que nem a caravana do Sílvio Santos se salva mais, pois até o Temer embarcou nela esses dias no SBT. Para que lado correr?
Curiosidade
Vocês lembram o resultado do segundo turno da eleição presidencial de 2014? É um dos episódios que desencadearam todo o nosso processo de instabilidade política atual. Resultado apertado.
Dilma (PT): 54.501.118 votos (51,64%)
Aécio (PSDB): 51.041.155 votos (48,36%)
Brancos: 1.921.819 (1,71%)
Nulos: 5.219.787 (4,63%)
Abstenção: 30.137.479 (21,10%)
Compartilhando leituras
A partir de um texto instigante de autoria do psicanalista e ensaísta Tales Ab’Saber, percebemos a construção do carisma de Lula, seus acertos e erros, mas, sobretudo, seu papel decisivo em nossa história recente. Para além de gostar ou não de Lula e seu partido, o livro de Ab’Saber (“Lulismo: carisma pop e cultura anticrítica”. 2ª ed. Hedra, 2016) nos convida a entender Lula como um fenômeno político relevante.
Por Thiago Ingrassia Pereira