I – Quem nunca se perguntou por que a violência se transformou em uma epidemia no Brasil? Por que tantas pessoas matam e morrem em situações de violência em nosso país? Para se ter uma ideia, apenas no ano passado quase 60 mil pessoas foram assassinadas. Os motivos são diversos, visto que envolvem tráfico de drogas, violência doméstica e nas comunidades, disputas entre grupos criminosos rivais, latrocínio, entre outros motivos. Certamente uma primeira explicação poderia sustentar que isso ocorre porque algumas pessoas nascem boas e outras nascem más e justamente as pessoas más estão mais propensas à violência e ao homicídio. Essa explicação, apesar de aparentemente ingênua e de já ter sido refutada há muitas décadas pela ciência, serviu de base para teorias racistas, porque serviu de suporte para a busca de um padrão de indivíduo mais propenso à criminalidade de acordo com as suas características físicas. Desse modo, alguns grupos raciais foram considerados “naturalmente” mais inclinados à violência e ao crime, sofrendo com todas as consequências de um estigma que perdura até os nossos dias. Se discordarmos de explicações que naturalizam a propensão à violência e ao crime, acreditando no que hoje sustenta a ciência, então precisamos encontrar uma explicação mais plausível. Mesmo não sendo um especialista na área da segurança pública – embora tenha sido aluno de professores especialistas nesta área e tenha colegas que desenvolvem pesquisas da maior seriedade sobre o tema – apresento aqui um argumento para discussão: a violência é um fenômeno estrutural no Brasil e o dualismo “cidadão de bem” versus “bandidagem” é apenas uma forma de simplificar algo que é muito mais profundo e complexo.
II – Afirmar que o Brasil é um país estruturalmente violento significa dizer que a violência é uma forma de resolução de conflitos legitimada pela sociedade, nos seus mais diversos níveis. Afirmar que a violência é tolerada e, muitas vezes, até mesmo praticada no ambiente familiar e na comunidade por indivíduos que se auto-intitulam “cidadãos de bem” não é um exagero. Caso contrário, assumiríamos a crença de que é possível a existência de uma sociedade potencialmente pacífica com um índice elevado de violência, fato que contraria qualquer exercício lógico. Para que se tenha uma noção, apenas pouco mais de 4% dos homicídios ocorridos em 2017 resultaram de roubo seguido de morte. Isso significa que os outros 96% possuem motivos diversos, sendo os mais comuns aqueles que têm relação com as drogas e os cometidos por motivos banais, muitos dos quais cometidos por indivíduos acima de qualquer suspeita e sem passagem pela polícia, que encarnam a figura do dito “cidadão de bem”.
III – Caso concordem com a minha afirmação inicial, de que a violência é um fenômeno estrutural no Brasil, gostaria de propor um novo argumento: a criminalidade é apenas a expressão terminal de uma violência que se dissemina pelas mais diversas vias da sociedade brasileira. Seria ingenuidade esperar que uma sociedade fundada na dizimação dos povos originários e na escravidão tivesse condições de reverter esse quadro de violência institucional em pouco mais de um século de trabalho livre. Ademais, torturadores a serviço de regimes autoritários ainda são admirados por setores da sociedade, como se houvesse algum tipo de sadismo (in)consciente que acredita ser a violência a melhor forma de calar os adversários políticos. Não são os criminosos que produziram um país violento, mas é o país violento que não cessa de produzir criminosos. Por isso, nossa violência estrutural tem na criminalidade apenas a sua expressão final. Isso não significa que as pessoas não façam escolhas e que os criminosos sejam apenas produto de “condições sociais” mas, certamente, em um país que valoriza a cultura da violência, a criminalidade encontra um terreno fértil para se desenvolver e prosperar.
IV – Se engana quem acha que a violência brasileira está circunscrita apenas ao Brasil. Estive em Budapeste, na Hungria, mês passado. Depois de um sábado de passeios pela cidade decidi ir a um bar à noite. Chegando lá, pedi uma bebida e ocupei uma mesa na calçada. Quando olho para um local próximo de onde eu estava, percebo empurrões e gritos, alguns em alto e bom português. Como claramente haviam brasileiros envolvidos, vou até o local para tentar fazer a mediação do conflito. Assim que cheguei pedi calma aos brasileiros e disse aos outros rapazes – ingleses, coisa que descobri depois – para manter a calma, que ali todos eram turistas e que não seria bom que terminassem a noite numa delegacia por conta de confusão. Nisso, um dos brasileiros (ambos não falavam inglês) faz um pedido a mim: “Diga a eles que eu sou brasileiro e que brasileiro não quer nem saber, mete a porrada”. Neste momento eu disse ao rapaz que minha ideia era justamente contribuir para que não houvesse qualquer tipo de agressão ou violência. Imediatamente sou obrigado a ouvir o seguinte comentário: “E a solidariedade brasileira, cara? Ajude a meter porrada neles. Eles estão nos tirando para otários”. Para esse indivíduo parecia não fazer nenhum sentido o fato de outro brasileiro não estar disposto a trocar socos com o grupo de ingleses, por isso o apelo à solidariedade. Resumo: em poucos segundos chegaram mais algumas pessoas e a confusão se encerrou. Tratei de pagar a minha conta e voltei para o hotel pensando no que havia acontecido. A conclusão que cheguei é um tanto simples, mas não desprovida de sentido. Mesmo fora do Brasil, um dos nossos cartões de visita é a violência, ou a capacidade de “meter a porrada”, como se isso fosse uma forma natural de solucionar conflitos. É claro que esse se trata de um caso isolado e não pode ser generalizado como comportamento de todos os brasileiros no exterior, mas o fato do rapaz relacionar a sua condição de brasileiro com violência nos diz muito sobre como se organiza a sociabilidade em um país violento como o nosso.
V – Não há saída para a violência estrutural que nos acomete que não passe pela afirmação de uma cultura de paz. A defesa de uma cultura de paz, a solução de conflitos por meio do diálogo e a construção de canais para uma justiça restaurativa precisam ser permanentemente afirmadas como um horizonte a ser perseguido pela sociedade brasileira. Neste sentido, instituições como a família, a escola e os poderes públicos em todos os níveis têm um papel decisivo. Precisamos de uma mudança civilizatória, que contribua para o combate da violência em todas as suas manifestações, seja ela física, mas também em suas manifestações menos consensuais, como a fome, a pobreza, o desemprego, o acesso precário a serviços públicos de saúde, educação e assistência social, entre outras mazelas que deixam marcas nas trajetórias de vida dos mais vulneráveis. Mudanças civilizatórias são lentas, mas em algum momento precisam começar.
Por Luís Fernando Santos Corrêa da Silva
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