A infinita fiadeira

Por Maria Emília Bottini[i]

 

 

 

Uma paciente chamou minha atenção quando estava sentada sozinha, pois pareceu-me bastante concentrada. Fiquei curiosa, visto tinha em suas mãos alguns papéis. Ao me aproximar contou-me que estava conferindo as respostas da prova de vestibular que havia feito para o curso de ciências contábeis.

Disse-me que havia uma pequena história na parte de interpretação de texto e que eu iria gostar. Ela me ofereceu para ler. Eu li imediatamente e fiquei encantada pela maestria e percepção do autor moçambicano e biólogo Mia Couto, escritor de diversos livros entre eles, “O Fio das Miçangas” em que narra a historieta “A infinita fiadeira”, cujo texto a paciente me deu a oportunidade de conhecer e que transcrevo a seguir.

“A aranha, aquela aranha, era tão única: não parava de fazer teias! Fazia-as de todos os tamanhos e formas. Havia, contudo, um senão: ela fazia-as, mas não lhes dava utilidade. O bicho repaginava o mundo. Contudo, sempre inacabava as suas obras. Ao fio e ao cabo, ela já amealhava uma porção de teias que só ganhavam senso no rebrilho das manhãs.

E dia e noite: dos seus palpos primavam obras, com belezas de cacimba gotejando, rendas e rendilhados. Tudo sem fim nem finalidade. Todo o bom aracnídeo sabe que a teia cumpre as fatais funções: lençol de núpcias, armadilha de caçador. Todos sabem, menos a nossa aranhinha, em suas distraiçoeiras funções.

Para a mãe-aranha aquilo não passava de mau senso. Para que tanto labor se depois não se dava a devida aplicação? Mas a jovem aranhiça não fazia ouvidos. E alfaiatava, alfaiatava, cegava os nós. Tecia e retecia o fio, entrelaçava e reentrelaçava mais e mais teia. Sem nunca fazer morada em nenhuma. Recusava a utilitária vocação da sua espécie.

– Não faço teias por instinto.

– Então, faz por quê?

– Faço por arte.

Benzia-se a mãe, rezava o pai. Mas nem com preces. A filha saiu pelo mundo em ofício de infinita teceloa. E em cantos e recantos deixava a sua marca, o engenho da sua seda. Os pais, após concertação, a mandaram chamar. A mãe:

– Minha filha, quando é que assentas as patas na parede?

E o pai:

– Já eu me vejo em palpos de mim…

Em choro múltiplo, a mãe limpou as lágrimas dos muitos olhos enquanto disse:

– Estamos recebendo queixas do aranhal.

– O que é que dizem, mãe?

– Dizem que isso só pode ser doença apanhada de outras criaturas.

Até que se decidiram: a jovem aranha tinha que ser reconduzida aos seus mandos genéticos. Aquele devaneio seria causado por falta de namorado. A moça seria até virgem, não tendo nunca digerido um machito. E organizaram um amoroso encontro.

– Vai ver que custa menos que engolir mosca – disse a mãe.

E aconteceu. Contudo, ao invés de devorar o singelo namorador, a aranha namorou e ficou enamorada. Os dois deram-se os apêndices e dançaram ao som de uma brisa que fazia vibrar a teia. Ou seria a teia que fabricava a brisa?

A aranhiça levou o namorado a visitar a sua coleção de teias, ele que escolhesse uma, ficaria prova de seu amor.

A família desiludida consultou o Deus dos bichos, para reclamar da fabricação daquele espécime.

Uma aranha assim, com mania de gente? Na sua alta teia, o Deus dos bichos quis saber o que poderia fazer. Pediram que ela transitasse para humana. E assim sucedeu: num golpe divino, a aranha foi convertida em pessoa. Quando ela, já transfigurada, se apresentou no mundo dos humanos logo lhe exigiram a imediata identificação. Quem era?  O que fazia?

– Faço arte.

– Arte?

E os humanos se entreolharam, intrigados. Desconheciam o que fosse arte. Em que consistia? Até que um, mais-velho, se lembrou. Que houvera um tempo, em tempos de que já se perdera memória, em que alguns se ocupavam de tais improdutivos afazeres. Felizmente, isso tinha acabado, e os poucos que teimavam em criar esses pouco rentáveis produtos – chamados de obras de arte – tinham sido geneticamente transmutados em bichos. Não se lembrava bem em que bichos. Aranhas, ao que parece”.

A aranha nos ensina que as artes substituem o que as palavras não podem exprimir. A forma como a aranha se relacionava com o mundo era de forma diferente das aranhas que a criaram e com quem convivia, era de forma sensível, introspectiva, não devorou seu namorado, mas se apaixonou por ele e lhe ofereceu uma de suas obras como sinal de amor, fazia sua arte de forma persistente e única.

Por vezes comportamentos diferentes são patologizados e recebem diagnósticos que não definem a aranha. Então é preciso transformar a aranha em outra coisa e o Deus dos bichos dá sua ajuda, pois é preciso consertar esse membro que carrega e denuncia a diferença afrontando a todos no reino dos aracnídeos.

E assim foi feito ela se torna de outra espécie, a humana. Diante dos humanos continua a revelar sua essência ao se apresentar dizendo que faz arte, está em suas entranhas, essa era a sua natureza. Mesmo transformada, revirada, mexida, ela é o que é, uma artista de si mesma.

Os humanos também não sabiam o que era arte, até que um idoso se lembrou, atribuindo isso a outra espécie, os aracnídeos. Ou seja, nem humanos e nem aranhas devem fazer arte, essa é a advertência, ninguém deve se diferenciar.

Essa história representa muito de nossa infinita fiação, obstáculos estarão presentes quando desejarmos algo mais que nossa espécie, quando tentarmos nos diferenciar.

Ao fazer arte, nos tornamos arteiros e podemos incomodar os que não sabem mais para que serve a arte. Os artistas nos lembram, vez por outra, que a arte da vida precisa ser tecida por nós mesmos, é um trabalho único e intransferível, enfrentando o que tiver que ser.

Não se iluda que isso seja fácil, mas valerá a pena, pois de teia em teia constituímos nossas vidas.

 

[i] Psicóloga da Clínica. Mestre em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF).

Doutora em Educação pela Universidade de Brasília (UnB).

Autora do livro No cinema e na vida: a difícil arte de aprender a morrer

E-mail: emilia.bottini@gmail.com