A classe conservadora de Erexim

Bem me lembro dos idos da década de trinta do século passado, quando ainda guri do interior  de Marcelino Ramos, Distrito do então Município de José Bonifácio, inserido no meio do mato, estradas feitas à picareta, pá e carrinho de mão, sem luz elétrica, sem rádio, televisão nem se fala, carro nem se sabia que existia tal meio de transporte, mas se ouvia falar, sim,  numa tal cidade de Boa Vista. Na minha inocência e ingenuidade, me perguntava: Puxa, essa cidade deve ser um lugar muito bonito de se ver e viver. Na época o meio de transporte, além do trem (maria fumaça), era a carroça puxada a bois ou mulas. Quem tinha esse meio de transporte era o seu fulano. E quando o rapaz  tinha um cavalo ou mula, para ir a uma festa ou namorar, também era considerado pessoa de bem; podia não ter um tostão no bolso, mas a montaria dava a entender que a família tinha um certo poder econômico. Casa de madeira com dois pisos, com porão e um sótão, era a manifestação clara de uma família bem sucedida economicamente. Em meados de 1930 a 1940, meus irmãos, convidados para o casamento de uma prima, lá de São Caetano, filha de um tio  chamado  Carlos Barp, vindo da Itália com dois anos de idade, foram a cavalo, levando a noiva até a localidade do Desvio Becker, onde se casou com João Rosset. Mas diziam que iam para Boa Vista.

O casal teve nada menos que dez filhos, a maioria ainda vivos. Mas o sentimento que pairava no ar, na época, era que aqui havia famílias ricas. Se  tinham estudo ou não, não importava. Sabia-se que eram trabalhadoras e econômicas. Falava-se nas comunidades, talvez, por força de expressão,  que não comiam o ovo para não botar fora a casca. Anos se passaram, e eu fui, em fevereiro de 1941, estudar em Canoas, no Colégio São José dos Irmãos Lassalistas, onde comecei a ser talhado para ser professor dentro da Pedagogia Lassalista, cujo fundador, São João Batista de La Salle, criou em 1680, a primeira Escola Normal do mundo, porque até lá os inválidos da guerra eram destinados a exercer o magistério e o ensino era individual e, La Salle introduziu o ensino simultâneo, utilizado até hoje. Voltando para a vida leiga em 1954, fui trabalhar na Companhia Siderúrgica Nacional, em Porto Alegre, mas minha formação era para o magistério. Por isso, deixei esse belo emprego e fui lecionar, primeiro na Escola São José, dos Padres Jesuítas, na Av. Alberto Bins em Porto Alegre; depois em Marcelino Ramos, nas Escolas Cristo Rei das Irmãs e no Sinodal da Igreja Sinodal. Porém as duas eram particulares e não me davam firmeza de permanecer na função. Precisava ingressar no magistério público estadual, por isso enviei diretamente à Secretaria Estadual de Educação meu curriculum vitae, com toda a documentação que me dava base legal e oficial para exercer devidamente o magistério em todo o território  nacional. Inesperadamente, em março de 1958, recebi telegrama autorizando-me a assumir a cadeira de francês, no então renomado Colégio Estadual Professor Mantovani, que na época funcionava à noite, na famosa Escola Normal José Bonifácio.

O corpo docente desse educandário era, então, constituído por um elenco de professores formados  pela PUC/RS,  ou pela UFRGS, ou por pessoas ex-seminaristas do clero secular ou religioso. Entre eles: Evandes  Barbosa, Carmen Stanisuaski, Frederico Madalozzo, Domingos Simoni, Dorvalino Franzon, Guerino Tomasel, José Francisco Cansian, Suzana Martins (todos in memoriam), Gino Carlos Seganfredo,, Alice Hemmerle, Vitalino Bevilaqua, Guiomar Bier e Tobias Pereira Sobrinho, para só citar alguns. Como em Passo Fundo já existia a Faculdade de Filosofia e ainda funcionava em período de férias, lá fui prestar vestibular no curso de Pedagogia e por quatro anos seguidos sacrifiquei as férias para me licenciar nesse curso. Durante todo esse tempo e, posteriormente, como professor de História no Curso da CADES (Curso de Aperfeiçoamento  e Desenvolvimento do Ensino Secundário) do MEC, lá se falava muito sobre “os novos ricos” de Erexim.

Não se mencionava os novos acadêmicos ou os formados em cursos superiores. Só “os novos ricos”, dando a entender que aqui existia, sim, riqueza, mas pouca cultura na população em geral, fechada num conservadorismo bairrista medieval. Uma classe tão conservadora, que ainda não conseguiu atualizar a escrita de seu topônimo, abrangendo, não só os que detêm o poder econômico, mas até certos introvertidos e covardes intelectuais em todos os setores da atividade humana, em especial, os professores da Língua  Portuguesa, e o clero em geral, que submete seu conhecimento a um  conservadorismo medieval, para não perder, quiçá, a ajuda financeira dele . Bota atraso cultural nisso! Por isso se dizia: “Erexim se basta a si mesmo” num sentimento de visão estreita, que protegia os donos de fábricas e do comércio, em geral, colocando barreiras para quem, de outros lugares, quisesse aqui se estabelecer.   Eis porque estamos onde estamos, no limiar dos cem anos de existência administrativa, à procura de uma saída para um desenvolvimento sustentável.  Como bem disse Jesus Cristo em Mateus 15, 14: “São cegos e guias de cegos. Ora, se um cego conduz a outro, tombarão ambos na mesma vala”. Isso significa que,  sem uma visão de futuro e sem a mentalidade de servir ao povo que deseja, sim, concorrência e não protecionismo maléfico que impede a livre iniciativa, mola mestra na conquista desse desenvolvimento, estagnou-se no tempo, apaziguado, apenas, com a chegada do ensino superior em 10/3/1969, mediante a criação do Centro Universitário Alto Uruguai, extensão da Universidade de Passo Fundo, que evoluiu  com  sucessivas etapas, até chegar à criação da atual URI com seus diferentes cursos, inclusive com o recente Curso de Medicina, autorizado pela Portaria nº 1.216, de 28/11/2017.

Nota: Erexim escrito pelo autor com “x”, baseado no Decreto-Lei Federal nº 5.186, de 13/1/1943, e na recente decisão da Academia Brasileira de Letras, órgão oficial que determina, em última instância, a correta escrita das palavras e dos topônimos.

Por Guilherme Barp

Professor e advogado