Amigos e Medo

Tive medo, ou vários medos. Hoje não mais os tenho.
Tive medo do escuro, de pedrada na testa, de freiras e maristas. Tive medo de sapo, rato, injeção e comunistas. Tive medo de mulher de bigode, verrugas peludas, olho de cego. Tive medo de paixão, de química orgânica e inorgânica, de falar em público; além de dançar, de defunto fresco e assombração à meia noite. Tive medo de morrer, e pior: morrer pobre. Medo de falhar como médico e como pai. Medo de decepcionar minhas filhas; medo de apostar e de não alcançar.
Tive medo de avião, altura, razão alheia, papai noel, cobra de mato, boitatá, mula sem cabeça e bolada no saco.
Mas os terrores primordiais foram superados pelos louros da idade adulta, que foram finalmente abafados e estrangulados pela maturidade plena.
Hoje, como disse, não mais os tenho. Estou pronto, acabado, quiçá entrando em leve estado decomposição física e psíquica. Por isso sou mais doce. Pouco me assusta a diabete ou o esquecimento.
Assim, com a euforia de um anjo decaído, sou um ex-pusilânime convicto e declarado.
Não interessam mais desgraças e muito menos nefastos inimigos. Simplesmente me atenho a viver o dia a dia. Me conformo em ser apenas mais um no singular e no coletivo. Deixei de odiar os pulhas – pois eles não valem a pena: aceitei as impostumas como verdades definitivas, não bato boca; a vida se torna fácil e leve.
Não creio mais no clero, nos políticos ou qualquer autoridade constituída ou destituída. As mulheres me confortam – especialmente a minha. Não preciso estudar nada, meus exames de saúde estão quase normais – contrariando todas as expectativas médicas.
Me resta ter medo de quê? Ter medo por quê? Ter medo de quem?
Não sou um grande homem, por isso em espera uma boa morte serena e normal, sem susto.
Além do mais não há mais o menor risco de eu enriquecer. Descobri que para viver basta um pingo de dignidade e maravilhosos amigos. A cara limpa e os amigos são a melhor régua para medir a existência.
Gosto mais de mim e sou mais tolerante.
Vivi todos os anos de carne e alma, corpo e cérebro, muito bem acompanhado pelas pessoas queridas e devo apagar a qualquer momento como um sopro. Um sopro no coração.
Só os grandes homens conquistam a morte trágica ou deveras surpreendente. Decididamente não é o meu caso.

Dr. Alcides Mandelli Stumpf –  Médico

Você pode gostar também

  • https://cast.youngtech.radio.br/radio/8070/radio
  • https://jornalboavista.com.br/radioculturafm/
  • Rádio Cultura Fm - 105.9 Erechim - RS