Um oceano para o que importa

Hoje, lembrei de um momento que vivi e que me mobilizou muito enquanto profissional da saúde mental e estudiosa da temática da morte e do morrer, que na época iniciava meu percurso.

Trabalhei um tempo com os bombeiros militares em Brasília. Tempo suficiente para entender que a vida e a morte estão sempre de mãos dadas. Neste período morreu um aluno e um instrutor.

Uma das minhas atividades, enquanto psicóloga e professora, era realizar algumas atividades de autoconhecimento com o grupo de alunos que enfrentava toda sorte de dificuldades para se adaptar ao regime militar: regras rígidas, treinamentos exaustivos, normas, hierarquia e disciplina entre outras coisas era um problema que precisava de escuta terapêutica. Quando entrava em sala de aula sempre me acompanhava um bombeiro militar, pois eu também tinha minhas regras a serem cumpridas.

Eu amei estar com eles, pois usei muita arte para dar conta dos civis que precisavam, literalmente, serem forjados a serem militares, por mais duro que pudesse parecer, existia uma escolha em participar deste tipo de formação, mas escolhas nos cobram preços que, às vezes, não queremos pagar.

Eram exatamente dezoito pelotões (turmas) com muitos alunos, todos com o ensino superior completo, o que na minha cabeça tornava as coisas mais fáceis, mas esse foi um dos meus equívocos. Com esses alunos utilizei de vários filmes como ferramenta pedagógica, um deles As sessões (pensando bem agora, acho que foi um tanto ousado), fui à exposição do Renascimento mais de 8 vezes (mais ousadia), fiz dinâmicas de grupo lindas que permitiram que os sentimentos aflorassem, analisamos imagens, fizemos colagem, fiz arte e mais arte. Deixei para eles algo para além da formação militar, para suas humanidades, para que sempre se lembrem da vida e do viver.

Acho que isso foi realmente uma grande ousadia, afinal, era um regime militar. Sempre fui e talvez sempre serei uma inconformada, pois vejo as coisas para além do quadrado e para isso a arte me ajuda, me ensina. Certo dia, ao despedir-me de um dos pelotões, desejei encontrá-lo na segunda-feira bem, completo, mas a vida tinha seus imprevistos.

Naquele final de semana um dos alunos que não estava na atividade, pois foi liberado para doar sangue, viajou para Goiânia, estava de folga e se acidentou gravemente juntamente com a esposa e faleceu.

O grupo de colegas estava consternado com a perda inesperada do colega, a que tinham muita admiração por ser alguém divertido e parceiro na caminhada da formação militar que estavam realizando.

O diretor do centro de formação, um homem sábio para além de militar, entendeu que era hora da psicóloga atuar, pois o momento exigia que se falasse da perda e não se ignorasse duramente e fosse engolido o choro da dor. Admiro este militar até hoje, era uma alma iluminada. Ele solicitou-me que trabalhasse com o grupo o luto e comigo esteve todo tempo mostrando aos alunos que a dor da perda também era dele. Confesso que não sabia muito bem o que fazer para confortar a dor do luto coletivo daqueles alunos e, enquanto caminhava pelos corredores, pensei, pensei e pensei.

Ao chegar à sala todos estavam muito quietos e tristes, foi então que decidi colocar uma mesa no centro da sala e solicitei ao grupo que me apresentasse o colega que eles conheceram durante o curto período que estivera junto. Sugeri que escrevessem  quem tinha sido o colega que faleceu para cada um deles, e quem se sentisse a vontade poderia dividir, em voz alta, o que havia escrito e depois depositar sobre a mesa. E assim fizeram.

Silenciosamente escreveram e pouco a pouco foram se levantando e registrando em suas memórias do tempo vivido e depositando sobre a mesa os bilhetes.  Fui me dando conta que a mesa se tornou um túmulo marcado pela força, pela luta, pela perseverança, pela alegria, pela doação e muito mais.

Após as explanações emocionadas dos alunos, alguns se permitiram chorar a dor da perda.  Reunimo-nos ao redor da mesa e nos abraçamos fraternalmente e nos confortamos pela perda sofrida; naquele momento também era minha, independente de conhecer ou não o aluno, estava ali com eles sendo continente da dor que a perda traz. Choramos e rimos na mesma intensidade, mas estávamos cientes naquele momento que a morte estava a nos lembrar o quão frágil é a vida.

Estou participando, como professora, do curso de formação da Pastoral da Esperança e Consolação, que tem como objetivo acompanhar enlutados após o falecimento de um ente querido.  Ao encerrar a primeira noite desse curso contei essa história. Sinalizei aos participantes que o fato é que não sabemos se estaremos todos juntos novamente na próxima semana, ninguém sabe, então que a gente aproveite a vida enquanto dela dispomos e que as despedidas sempre sejam um aceno para ficarmos atentos ao que realmente importa.

 

Por Maria Emilia Bottini12

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