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O verdadeiro papel e lugar da agricultura familiar no desenvolvimento rural

A sociedade brasileira historicamente tem sido caracterizada como uma sociedade desigual, expresso em interesses conflitantes entre os distintos grupos que disputam entre si e para si os rumos e destinos a serem dados à própria sociedade. No mundo rural isso não é diferente e se expressa, igualmente, em visões políticas e projetos antagônicos. De um lado, o “agronegócio”, revelado sob a forma das grandes explorações de larga escala e centrado na grande empresa agropecuária concentradora de terra, e do outro, a “agricultura familiar”, antes agrupados em torno da genérica categoria de “trabalhadores rurais” (posseiros, meeiros, parceiros, arrendatários, assentados da reforma agraria, etc.).

Esses agricultores atualmente são os que operam estabelecimentos rurais, cujo tamanho variam de município para município (de 20 a 440 hectares). É um estabelecimento baseado na administração e no trabalho familiar, e a produção é majoritariamente destinada ao abastecimento do mercado interno. As duas visões são traduzidas em disputas de espaços na sociedade e no acesso aos recursos públicos, inclusive, se reproduz em termos de estruturas de governo, o “agronegócio”, o sob a tutela do Ministério da Agricultura e do Abastecimento (MAPA) e a agricultura familiar, de responsabilidade do que no passado foi do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), atualmente substituído pela Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento (SEAD).

A “noção” de agricultura familiar surge no cenário do agro brasileiro na década de 90 por meio do estudo de vários pesquisadores tais como: José Eli da Veiga, Ricardo Abramovay e Hughes Lamarche, cujos subsídios acadêmicos e de pesquisa auxiliaram a criar em 1994, o Programa e Valorização de Pequena Produção Rural (PROVAP), precursor do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), estabelecido pelo Decreto nº 1.946, de 28 de junho de 1996. Com a criação do PRONAF se institucionaliza em nível de Estado a disputa de recursos orçamentários do governo federal para segmento de agricultores tradicionalmente deixados de fora do crédito rural e das políticas públicas. Essa disputa atualmente se expressa na edição anual do Plano Agrícola e Pecuário, operacionalizado pelo  Ministério da Agricultura e do Abastecimento (MAPA) para a agricultores do “agronegócio” e do Plano Safra, a cargo da Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento (SEAD), destinado aos agricultores familiares.

A criação de uma política de crédito rural específica para os “trabalhadores rurais” veio na esteira de um extenso processo de pressão das organizações de representação sindical em virtude da abertura comercial com os países do Mercosul, deixava os “trabalhadores rurais” em ampla desvantagem com esses competidores. Dessa forma, as organizações  e valendo do surgimentos de estudos acadêmicos adotaram a noção de agricultura familiar, que ganhou expressão e identidade política e aceitação social, inclusive, culminando com a disputa e divisão do segmento da representação sindical desse agricultores.

Dessa forma, o debate referente à disputa por recursos do orçamento federal se espraiou para a arena política entre os dirigentes da agricultura empresarial (o agronegócio) e da agricultura familiar, por meio de um conjunto de argumentos e justificativas políticas. O principal deles foi sustentado com a realização do Censo Agropecuário de 2006, ao fazer um recorte das informações destacando a expressão econômica e produtiva da agricultura familiar que foi publicado em 2009. Os dados foram interpretados e propagandeados exaustivamente por muitos agentes de governo, lideranças políticas e sindicais que a agricultura familiar foi a responsável pela produção de 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros.

Essa informação foi contestada em 2014 por Rodolfo Hoffman da Escola Superior de Agricultura “Luiz de Queiroz” (ESALQ-USP). Esse autor é um dos maiores especialistas em censo no Brasil ao afirmar que é espantosa a reprodução sem crítica dessa informação que por si só não faz sentido e não tem base de sustentação. Segundo o estudioso, para falar em “70% dos alimentos” seria  obrigatório estimar o total de matéria prima e dos alimentos em todas as cadeias produtivas. Contudo, devido a grande heterogeneidade da oferta dos alimentos é tecnicamente incorreta somar as quantidades físicas, sem estabelecer as diferenças existente entre o produto bruto e o alimento industrializado.

Outra questão levantada pelo autor é o que se entende por “agricultura familiar”, via de regra, se utiliza o que está expressa na lei nº 11.326/2006, qual sejam que os estabelecimentos devem possuir até quatro módulos fiscais, e que diferentes para cada município (variam de 20 a 44hectares). A mão de obra deve ser predominantemente da própria família a ser utilizadas nas atividades econômicas do seu estabelecimento, tenha renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento e  dirija seu estabelecimento com sua família. Essa “noção” vem sendo contraposta, especialmente, devido ao fator de dar pouco peso a dimensão econômica, e que a ideia de “familiar” não deve estar restrita ao tamanho do estabelecimento.

Em outro trabalho publicado por Kageyama e outros em 2013, com base nos mesmos dados do Censo Agropecuário de 2006, estimaram que a agricultura familiar contribuiu com 52% do valor da produção. Contudo, os critérios utilizados para definir agricultura familiar sejam bem mais abrangentes do que os da Lei 1nº1.326/2006, em que o critério principal é que pelo menos metade da mão de obra utilizada deveria ser da família, não adotava restrições ao tamanho da área totaldo estabelecimento ou à origem da renda familiar.

Ainda utilizando dos argumentos utilizados por Rodolfo Hoffmann e considerando que a agricultura familiar não exportou nenhum produto e ao considerar uma inflação de 15% entre o ano do Censo Agropecuário (2006) e janeiro de 2009 (que é o ano da publicação do Censos Agropecuário de 2006), a produção da agricultura familiar corresponderia a 21,4% do valor total das despesas com alimentos das famílias do país. O trabalho do autor enfatiza ainda ser praticamente impossível avaliar, com precisão razoável, qual é a parcela da matéria-prima usada na produção dos alimentos consumidos no Brasil, e quais os que se originam da produção da agricultura familiar. Para tanto, teríamos que analisar quase todos os canais de comercialização de todos os alimentos e das respectivas matérias-primas.

Por fim, o que se pretendeu com esse texto não é diminuir a expressão e importância econômica e política da agricultura familiar para o país. Para tal já existe uma vasta produção de pesquisas e estudos que atestam isso com sobra de argumentos. Julgo desnecessário se utilizar de “dados” fictícios e fantasiosos para caracterizar e justificar a necessidade de apoio e valorização a esses agricultores. Além disso, vencer as resistências políticas e empreender esforços para elaboração de um conceito mais preciso para além do enquadramento nas políticas públicas de crédito rural ou de enquadramento sindical.

 

Eliziário Toledo

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