Como o veto europeu a produtos ligados ao desmatamento pode afetar a soja e a carne bovina do Brasil
União Europeia aprovou acordo preliminar no dia 6 de dezembro. Especialistas têm dúvidas se as ferramentas de monitoramento que o Brasil usa serão válidas.
A União Europeia (UE) vai proibir as importações de produtos de áreas que foram desmatadas depois de dezembro de 2020, o acordo ainda precisa ser aprovado formalmente e, após a sua publicação, alguns artigos serão implementados somente em 2024 – o bloco não especificou quais são.
A medida vale para qualquer país e inclui a comercialização de gado, soja, cacau, café, dendê, soja, madeira, couro, chocolate e móveis. Dos biomas que a lei contempla, estão inclusos a Amazônia e parte do Cerrado.
Um dos pontos do projeto que gera preocupação é ele ter uma definição abrangente de desmatamento, aponta Leonardo Munhoz, pesquisador do Centro de Bioeconomia da Fundação Getúlio Vargas (FGV). No documento, o termo inclui as degradações ocorridas devido ao “excesso de atividades agropecuárias” e não fala de desmatamento legal e ilegal.
Para a equipe de Munhoz, isso mostra que os europeus não querem proibir o comércio apenas com produtos de origem de desmatamento ilegal, mas também do desflorestamento como um todo, inclusive o legal.
As negociações com o Brasil poderiam ser afetadas na medida em que há produtores que trabalham a partir do desmatamento legal – portanto estão dentro da legislação nacional, mas estariam impedidos pela nova regra.
O que é o desmatamento legal: No Brasil, é considerado desmatamento legal aquele que ocorre com autorização dos órgãos competentes e fora de áreas destinadas à preservação, devolutas ou de domínio público.
Futuro da soja ainda é misterioso
Dentre os produtos da soja, o farelo é a mercadoria mais importante no comércio entre o Brasil e a União Europeia, diz Luiz Fernando Gutierrez Roque, especialista em soja da consultoria Safras & Mercado.
A nova legislação pode ter impacto sobre essa exportação, mas fica difícil mensurar o tamanho dele enquanto a UE não especificar como a lei vai funcionar, diz Roque.
No caso da soja, o Brasil já consegue rastrear a produção do grão na Amazônia por meio de imagens de satélite, uma iniciativa de ONGs e das próprias associações do setor, implementada em 2006, que ficou conhecida como “Moratória da Soja”.
A Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil) afirmou que não irá comentar o assunto.
E como a legislação europeia pode impactar a carne bovina brasileira?
Na comparação com a soja, a carne bovina tem uma menor representatividade na pauta de exportação do Brasil: do total que o país vendeu em 2021, por exemplo, 6% foi para a União Europeia (UE), segundo dados da plataforma Agrostat, do Ministério da Agricultura.
As exportações de carne bovina brasileira para a União Europeia podem ter uma redução em função da nova legislação, diz o consultor do Safras & Mercado Fernando Iglesias.
“Porém, o grande problema é que a Europa não tem grandes alternativas de fornecimento de carne bovina para substituir o Brasil”, diz.
“Os grandes exportadores de carne bovina são os Estados Unidos, Brasil, Austrália, Argentina e Uruguai. A grande questão é que, enquanto o Brasil está em um momento de expansão do rebanho, os nossos grandes concorrentes, incluindo a União Europeia, estão passando por um processo de encolhimento”, destaca.
Para ele, os grandes frigoríficos brasileiros não têm problemas em se adequar às regras do jogo, “desde que sejam bem remunerados por isso”. “Ou seja, esse tipo de carne, provavelmente, será negociado a preços mais altos”, acrescenta.
A Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec) disse que avalia a medida e que, por enquanto, não irá se manifestar.
Como o Brasil monitora a carne bovina
A principal iniciativa do setor é o programa Carne Legal, resultado de um Termo de Ajuste de Conduta (TAC), firmado em 2013 entre os grandes frigoríficos brasileiros e o Ministério Público Federal (MPF).
Contudo, a iniciativa é restrita à Amazônia e só consegue monitorar o desmatamento na criação de gado em fazendas de fornecedores diretos, ou seja, em propriedades que vendem o boi direto para os frigoríficos.
A rastreabilidade ainda não alcança os indiretos, criadores que vendem bezerros e boi magro para serem engordados em outras fazendas.
Propostas para rastrear os fornecedores indiretos
Rafael Rocha, que coordena o programa Carne Legal e é procurador da república, diz que uma maneira de lidar com isso seria os próprios frigoríficos começarem a monitorar os seus fornecedores.
Um dos documentos que poderia ajudar os frigoríficos é a Guia de Trânsito Animal (GTA), uma exigência do Ministério da Agricultura para o transporte de bois pelo país e que reúne dados sobre origem, destino, finalidade, espécie e vacinações.
“O problema é que essa base de dados não é pública. Se o governo fosse transparente, a gente poderia cruzar os dados do CAR com a GTA para conseguir rastrear a origem”, explica Marina, acrescentando que essa medida está sendo proposta ao governo de transição.
O MPF também tem monitorado o índice de produtividade dos pecuaristas. Se trata de um documento com protocolo, que determina que, se uma fazenda tiver uma produtividade maior do que um boi por hectare, deve ser verificada com maior atenção pelos frigoríficos.
Para o procurador Rocha, uma solução definitiva, porém, seria a implementação de chips nos bezerros ao nascer.
Outras ferramentas que o Brasil já tem
O Brasil também tem o Cadastro Ambiental Rural (CAR), um documento que faz um raio X das propriedades rurais por meio de ferramentas de geolocalização e monitoramento de satélites, pontua Munhoz, da (FGV).
O CAR é uma das ferramentas do Código Florestal, uma lei brasileira que foi implementada em 2012 e que prevê como a vegetação deve ser tratada no Brasil, especialmente dentro das áreas rurais privadas.
“O Código Florestal é exponencialmente mais rigoroso do que a própria legislação europeia – que é praticamente nula no sentido de preservar. Em outras palavras, eles [os europeus] estão exigindo o que nem de perto fazem”, critica a CEO da consultoria de mercado de carnes Agrifatto, Lygia Pimentel.
“Observe o caso da Amazônia. Para produzir nesse bioma é necessário que o produtor brasileiro tenha 80% de sua área privada preservada na propriedade, mais áreas de APP [área de preservação permanente, como topos de morros e beiras de rios]. Já no bioma mata atlântica [sudeste do Brasil], é exigido 20% de matas, mais áreas de APP”, ressalta.
“As leis ambientais deles [dos europeus] normalmente se reservam a controlar a poluição dos rios, o descarte de dejetos. Mas não obrigam o produtor a preservar florestas públicas e arcar com o custo disso – que é o caso do que acontece no Brasil”, acrescenta Lygia.
Para ela, também resta saber de União Europeia irá validar esses sistemas que o Brasil usa.
Munhoz, da FGV, lembra ainda que, no Brasil, há o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que realiza o monitoramento por satélite do desmatamento, com mapas interativos, mostrando taxas anuais de desflorestamento.